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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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02
Fev17

Poema Infinito (340): labirintos

João Madureira

 

 

 

Possuo dentro de mim uma aldeia teórica. E mamífera. Durmo dentro dela nas horas perigosas. Nas várias porções do sono vou aumentando o meu vocabulário. A vida constrói-se quase sempre em volta de uma argumentação absurda. A felicidade é uma espécie de santa traição. A sua memória define-se pela dessincronização alegre do silêncio. A vida habita no seu condomínio fechado com saudades da velha casa do campo. A minha alegria é camponesa, guarda as cores dos montes, rejeita os ódios pacíficos, a perfeição da espera e as vinganças. Desço sempre os degraus um a um. Esse é o meu exercício intelectual mais rigoroso. O pensamento é tão transparente como o ar. Talvez um pouco mais espesso. As crianças procuram nos balões coloridos a ambiguidade da sua origem. Cada dia as formigas trabalham mais, imbuídas da sua utilidade divina. Acreditam em milagres e nas hierarquias. Acreditam no progresso e na sua representação. Os deuses estão cada vez mais preguiçosos. A ociosidade faz-lhes mal. Torna-os inúteis e obesos. Os homens já não possuem destino. Não conseguem chegar a tempo, não conseguem definir o seu ponto de partida, as suas influências, o seu saber. Os seus caminhos são incertos. As suas horas estão repletas de enganos. Deixam as suas próprias armadilhas a descoberto. O seu olhar já não possui coragem, mesmo que disfarçada. Os seus movimentos mais destemidos assemelham-se às fugas. Mergulham no mar mesmo sem saber nadar. Tremem-lhes as mãos, escondem as suas qualidades, perdem, pouco a pouco, o erotismo, afastam a sedução. As suas emoções são traídas pelo método, pela distância das evidências. No entanto, ainda há homens tão destemidos que conseguem chegar sempre a tempo, sabem procurar as horas e perguntar pelo seu caminho, escolhem o próprio destino. A sua felicidade não tem enganos. Sabem acompanhar as decisões dos místicos, evitar os efeitos maléficos do medo, desviar-se das ilusões óticas. Pensam o mundo sem mudar de rosto, através da fisionomia dócil da música sacra. Observam e estudam os processos mecânicos da corrupção. Não existem multidões sinceras. Procuram as alegrias íntimas no meio dos míscaros, associam as partículas interiores da saudade, excitam a beleza com os dedos em júbilo, escrevem manuais de sobrevivência para as vítimas das grandes quedas. Sabem que a melhor alegria é a espiritual. Aprenderam que no céu os deuses patéticos não saltam muros, que os deuses do amor roubam os beijos, que as fronteiras são os limites materiais da traição e que os órgãos que produzem a alegria são os mesmos que originam a tristeza, apesar do seu temperamento opositivo. Sabem ainda que os tribunais humanos não conseguem desenhar linhas retas, que apenas alcançam somar o peso das circunstâncias às decisões unívocas. Os seus relógios apenas medem o tempo qualitativo. Volto a encher a casa de pormenores, a guardar algum espaço para a beleza, a colocar os bons exemplos nos seus postos de vigia. A beleza apenas existe naquilo que é olhado. Continuo a guardar os rebanhos lentos da impaciência. A matéria possui o seu próprio futuro. A memória tem futuro porque os deuses protegem o passado e as suas evidências, apesar de a sua alegria ser eficazmente domesticada. Os deuses são de uma ineficácia extrema. As crenças exigem eternamente uma viagem interior. Os heróis perdem-se sempre no labirinto do seu orgulho.

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