Poema Infinito (361): O sagrado coração da desilusão
Os anjos entortam-se ao pé da nogueira e depois morrem junto à sombra do tempo que os abraça. Os homens espiam-nos atrás das mulheres. Os seus olhos já não perguntam nada. Até o demónio fica comovido. As tardes são agora azuis e insinuam os desejos. A noite fica triste sem querer. A consolação é como um amor feito de versos. Louvar a Deus alivia o queixume e o desprezo. A alegria e a tristeza padecem da mesma moleza, andam na rua de olhos baixos. Sofrem da mesma sensibilidade. Os romeiros continuam a subir a ladeira, a picar-se nos espinhos, a contornar as pedras, a suar as suas culpas, a carregar os seus pecados, a ouvir os sinos tocar a sua pureza, a trazerem flores, prendas e rezas. A procissão vem a seguir e o vento que persegue as romeiras brinca com as suas coxas. Os homens cantam sem se cansar. Jesus expira queixoso cravado no seu lenho. É dia de festa. Os olhos dos romeiros pedem, as bocas dos romeiros suplicam, as mãos dos romeiros imploram. Jesus, exangue, desfalece sonhando com outro tipo de humanidade. Neste momento, o seu pai abandona-o sempre. Depois os poetas embebedam-se tentando deixar de compreender a divindade. O dia já nasce atrás dos quintais. Ninguém sabe se o mundo vai acabar ou não. As previdências dormem tristíssimas penduradas nos andores. É difícil encaixar tanta santidade em tanta solidão. As virtudes são agora mais científicas, as diferentes culturas são melhor assimiladas, as elites são muito mais subvencionadas. Mesmo as paixões são mais sublimes. Já não se cometem revoluções, não se promovem compromissos. A razão já não exige sofrimento. Precisamos é de esquecer os carinhos, a desilusão do amor, o gozo, as cartas explicativas, toda a providência humana, toda a nostalgia divina, os remorsos, o inferno, o sagrado coração da desilusão, o perdão, a sombra doce do pecado, o sorriso maduro das mulheres desiludidas, as carícias disfarçadas de carícias, a inutilidade dos protestos, a utilidade dos protestos, os risos provocantes, as moças casadoiras, as análises proustianas, a sombra rodada das moças penetradas, as tardes de domingo, os desejos que já morreram e os sinos que tocam a rebate fora do tempo. Com duas mãos apenas recolhe-se todo o sentimento do mundo, acaricia-se o corpo transigente, pinta-se a confluência do tempo. É necessário dispersar a fronteira da guerra, recolher o fogo e o alimento, disfarçar as memórias, encontrar o amanhecer, levantar o céu com a mão esquerda e suportar o mundo com a direita. O tempo começa a depurar-se. Antigamente as mulheres ficavam sozinhas e não se assustavam com quem lhes batia à porta. Apagavam as luzes. Dentro da escuridão resplandeciam os seus luzeiros. Tinham a certeza do sofrimento. Os seus olhos não choravam. Sustentavam o mundo com as suas mãos de criança. A vida é uma ordem. Afastamo-nos do presente para encontrar a realidade. As histórias parecem paisagens vistas das janelas, parecem cartas suicidas. No álbum das fotografias os mortos amontoam-se. Avô morto, avó morta, tios mortos, primos mortos, amigos mortos, pai morto, mãe morta. Mão morta, mão morta, vai bater aquela porta. O pó começa a amontoar-se nos olhos que foram cintilantes. Fora do álbum muitos outros mortos se amontoam na minha memória: o comboio, os pássaros, os cães, os gatos, as galinhas, os porcos, os perus de Natal, as pavieiras, a esperança, a paciência, a aldeia, os bois, o burro, os lírios, os sorrisos, os beijos, a varanda, os crepúsculos, os lobos, os pobres, todos os rostos imóveis… todos os rostos imóveis… todos os rostos imóveis…