Poema Infinito (365): As velas ininterruptas
As colunas de ar sorvem as partículas magnéticas do tempo. Alguém dança com o rosto mascarado de luz. Os dedos estremecem. As sombras gritam. A vida continua misteriosa, repleta de animais selvagens, com o coração rasgado batendo por dentro dos sentimentos. Os gritos fervem dentro das panelas. As frases transbordam dos livros. Dentro dos olhos, dobram-se os espelhos e as arestas do tempo amadurecem. As raparigas dançam revoluteadas pela luz, enfloradas pelas rosas, arrancadas pela raiz. E sangram. As raparigas sangram sempre. Os seus corpos iluminam-se como se fossem anjos crucificados em postes de eletricidade. A sua fúria tem a dureza dos diamantes. O desejo fica turvo e a carne é atravessada por sonhos de ritmos e noites de água e montanhas e árvores que choram. As montanhas crescem e dentro delas os animais aligeiram-se. Distingue-se agora a noite e as pupilas bruscas do furor. A carne treme depois do coito. A morosidade sai de dentro do sono. Os rostos embranquecem, a temperatura difunde-se pelos feixes dos sentimentos mais secretos. Vibram os tendões. O toque é nitidamente zoológico, sem doçura nem inocência. A noite estremece. A luz ferve do outro lado. Os lugares somem-se uns dentro dos outros. Iluminam-se as paredes. Os anjos pintam os sexos com a força do desejo e sopram átomos para o seu âmago. Acendem-se os cabelos, faíscam os corpos. Visitamos os territórios fechados da volúpia, a sua ofuscante jubilação, o entusiasmo branco dos orgasmos. Somos possuídos por visões e mistérios e idiomas imaculados. Os sentimentos têm agora uma doce aptidão doméstica, enchem-se de delicados arco-íris e voam como mariposas bruxuleando de sono. Os anjos brilham como pirilampos radiativos, possuem a voz de Hiroxima. Até a palavra Deus ficou calcinada. Meu amor, Hiroxima? Ouve-se a música do apocalipse. Alguém pinta o inferno. Ardemos numa espécie de inocência. Este é o nosso modo de ir para longe. As flores ardem nas campânulas. O horror verga os espelhos. O mundo fica cheio de linhas ferozes. Das gárgulas nunca jorrará a claridade. Olhamos o mundo do outro lado da porta. Os pais, as mães e os filhos dormem sob a luz das canções difíceis. Estremece o medo pelo excesso das imagens de sofrimento. Auschwitz é um serão de pedra… arbeit macht frei… A manhã estremece de medo. Arde a carne, a seiva excessiva das imagens, a respiração do frio, da fome, do medo e do sangue. Exalamos o Gulag e a respiração gelada de Soljenitsin. Plantamos a fome dos livros nas estantes, lá no cantinho mais distante. Fechamos então a porta. As crianças vibram como loucas, estuam nas suas danças. O suor alaga-lhes os membros. Ficam crispadas como se fossem ecos eternos. Desejam ainda ocupar o sítio dos cometas. São como rosas mudas. Trazem dentro de si a praga dos crisântemos tardios. As vozes do mundo metem-se pelos tubos. O ouro chega às espigas. As cigarras crescem no meio das pedras. As palavras supérfluas empurram-se umas às outras. A poesia também pode ser uma dor que não dorme nem deixa dormir. As crianças mais antigas repousam dentro dos retratos sem luz, são como blocos de pó ligados à morte. Limpamos o sal da boca e abraçamos o mármore frio. Ouvem-se vozes lá ao longe, ininterruptas, assombradas. Contemplativas. A beleza continua seduzida pela ideia de devorar a lei da desordem e do caos. Os filhos continuam a escrever às mães com os seus rostos iluminados e ardem como se fossem velas ininterruptas.