Poema Infinito (368): A extensa eficiência do quotidiano
Entro depressa na noite porque está impregnada de quotidiano. Durante o dia, o sol foi eficiente. E extenso. A sua luz proporcionou-nos uma festa e alagou as casas. Encheu cântaros, bacias e alguidares, abrilhantou o calçado, orientou o olhar das crianças, pôs reflexos novos nos vidros das janelas. A faca cortou o pão, o vizinho agregou o conduto, a loucura ficou mais acessível. Ninguém ficou indiferente. O sol veio de longe e foi iluminando os sítios, a pressa da gente dos bairros e as penas das galinhas, dos patos e dos perus. Renasceram-nos os olhos na praça. Todos os regressos foram lembrados e celebrados. O tempo acompanhou o voo dos pássaros. Depois as estrelas morreram no poente e os rostos estalaram enquanto as palavras começaram a planar sobre o manto da inquietação. Foi então quando o teu sorriso desceu dos montes até chegar ao rio. Dizem que é dessa forma que os corações desaguam. Foi em Jerusalém que os homens aceitaram a morte, onde as mulheres começaram a dizer adeus com os lenços, onde os sinos desfolharam o tempo, onde o silêncio do sudário de Cristo tomou o lugar no passado. Também foi lá que a música preencheu as almas e abriu novos espaços. A cruz de Jesus foi sempre pouco funcional, quer para os torturadores, quer para o torturado. A verdade espalhou-se pelos jardins, as mãos dos fiéis ficaram tristes de tanto saudar. Desfraldaram-se colchas, saudaram-se as feridas dos condenados, bebeu-se paixão como se fosse amor. Os donos do mundo olharam para o sofrimento e pensaram que ele serve para purificar os outros. Os seus rostos parecem versos pintados de fresco. A voz do poder justifica a arquitetura incondicional da fé. A chuva, quando vier, cantará nas ruas o desgosto dos homens. Os pecadores confessam-se e agradecem o milagre de estarem vivos. Aprenderam a esperar pelas estações, a conviverem silenciosamente nos dias de jejum, a tornar submissas as mãos das crianças, a esquecerem os sonhos e a condição do arrependimento e também o elogio triste da imortalidade. Pensam renovar a vida desenhando o sinal da cruz, exigindo sacrifícios aos olhares, esperando a obediência, antecipando o tempo das injustiças, tornando a caridade uma profissão, clonando as barbas de Abraão, plantando hortênsias nas manhãs de domingo, desertando da alegria, tornando-se o brilho fugitivo do olhar dos deuses, instalando a sua camilha num recanto do céu. A tarde acompanha a curvatura da terra e propaga a primavera pela órbita das oliveiras. Escolhem-se os pensamentos, acendem-se no regaço das mães os lírios do tempo, saltitam nos olhares os sorrisos da infância. Enchemos as mãos de vento. As ausências são como resina brilhante, cheiram como os cedros, brilham como o destino. Envolvemo-las em palavras. Escutamos o seu silêncio junto com o canto pontiagudo dos pássaros de arribação. O tempo equilibra os mares e os caminhos, pressente a chuva, adivinha os gestos e orienta os pensamentos. Repouso os meus versos na boca do dia e lavarei os pés no primeiro orvalho. As coisas gloriosas guardo-as dentro de ti e transformo as lágrimas em lindas metáforas. O tempo rouba as horas mais domésticas. Os teus lábios arredondam-me de prazer o pénis. Estou à beira do abismo. Cubro-te o corpo de dádivas. Longe de Jerusalém, os corpos voltam à vida. O Senhor sente as folhas que morrem. Erguem-se as estações como se fossem braços. Três gestos decisivos libertam as mãos e desenham no universo os desejos mais antigos.