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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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23
Nov17

Poema Infinito (381): Cruzamento de fogo

João Madureira

 

 

Tento adormecer lavrado pela poesia. As aparições continuam. E os casulos de seda. E o inventário do sono. E a noite que tudo estrangula. Os objetos estão ligados à corrente sanguínea. Os idiomas bárbaros correm perigo de morte. Os seus vocábulos perdem todos os dias mais um pouco de substância. As estrelas continuam a abastecer-se de poesia. Por isso correm o risco de fundirem. O jardim enche-se de luzes magníficas, as imagens faíscam, as nuvens acordam dentro dos nossos abraços. O sabor das mães por vezes é amargo. O umbigo é uma outra forma da placenta. O seu canto doma os animais. O seu amor é canibal. O batismo acontece de forma atónita. As palavras ficam surpreendidas. A sua razão é leve. Com elas foi construído o paraíso. Os sítios nunca param, são como objetos astrais. A intensidade da água banha o dulcíssimo sono da aurora. Abrem-se os espelhos e por eles passam raios de palavras. Cantam os corpos e as suas ramagens. As máscaras moldam os rostos. Amo-te porque te consigo entoar de forma primitiva. As árvores vergastam os espaços. Os frutos mais pequenos entontecem as mãos. Murmuramos palavras obscenas quando nos tocamos. A escrita fica rodeada de vozes e de minúsculos abalos. Tentamos ouvir o escuro, perceber a desarrumação das coisas, afinar as feridas, afundarmo-nos no sono, construir teias de leveza, desvendar as luzes mais sombrias, perceber o cântico dos precipícios, transformar os sonhos em som e tentar transformar o mundo. As criaturas mais doces levantam as mãos e iluminam-se por dentro. A sua voz propaga-se em círculos. Os mestres colhem inocência nos hortos da memória. A música fica fria e afunda-se na loucura. As imagens estremecem como se fossem juncos. Os nomes respiram pela última vez e afundam-se na água do lago. Tudo se tranca em mim. Tudo se revela em mim: os braços, a boca, o latifúndio bravio dos teus olhos, as biografias rítmicas dos oceanos, o sexo com a polpa talhada em forma de diamante, as entoações mais ácidas e densas. As mãos das mães sabem bem qual é o ponto forte do quotidiano, sabem também transmudar as memórias, iluminar os sítios, intensificar as coisas, expor o seu trabalho ao assombro, aprender a purificar os elementos, fazer escoar a seiva pelos orifícios, mover o apoio das palavras mais lentas, banhar a virgindade dos seus filhos, apoiar as palavras-fêmeas, coser as rosas com as unhas, levedar a massa com as mãos mais agudas, desatar o poder da delicadeza, disfarçar as cicatrizes, deixar as crianças principiar sucessivamente, aumentar o vagar, alongar os ofícios, transformar a sede em poesia, aliar a poesia e o absoluto, regar as roseiras com a sombra, tornar abundantes as vidas mais simples, exaltar as vertigens, aliviar as cicatrizes do tempo com palavras maternas, assistir às vertigens, exaltar os nenúfares e as cerejeiras, ensinar a memória e a dor, tornar macios os dedos mais violentos, meter as mãos nos idiomas, passar força aos segredos, tocar os dias nos seus aspetos mais doces, mover os astros e os rostos e os sonhos em chamas. Os seus filhos vibram e brilham quando entram dentro das palavras. A noite parece uma pedra inocente que beija as árvores. Passas os teus dedos apavorados pela imobilidade do meu sexo. Beijo-te como se fosses uma árvore florida. Os símbolos ficam em silêncio. As minhas mãos procuram a pureza das tuas. As raízes divulgam o delírio. Amamo-nos debaixo de um cruzamento de fogo.

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