Poema Infinito (393): Retalhos e metáforas
Junto os retalhos das palavras inquietas, aquelas que as metáforas esquartejaram quando suspiravam por leituras de viagens e comiam sofregamente as frutas mais maduras, as rosas mais vermelhas, as madrugadas mais débeis e as margens dos rios mais profundos. Dedilho o desejo na intimidade, no aconchego da lareira, emudecido pela tarde fria. Dedilho o desejo, o teu encanto, o gosto do teu sexo. Memorizo o orvalho, o cicio dos pássaros nos salgueiros, a serena quietude dos teus beijos, as tuas coxas delirantes. Lembro-me de colher cerejas, de vindimar ao sol, de sentir o fresco odor do teu cabelo. Os medronhos lembram-me o pecado, o sabor ácido das horas, o mosto das manhãs, o estio, as juras e os testemunhos, o delírio, a loucura e o êxtase. Navego na mesma nave bravia que já foi do Torga, desde Galafura até ao infinito. Os meus lábios provam os teus seios. Ouvem-se gritos suaves e cânticos de delírio nos retábulos da saudade que se torna inquieta. A clepsidra está repleta de espaço e de tempo. Um dia destes o conto será outro. O futuro está ali à nossa espera. Depois da tempestade virá a bonança, a volúpia e a utopia da verdade. Chove água miúda na terra quente. A promessa de inverno é uma ideia calma. Nos beirais, o sincelo juntar-se-á ao colmo e aos pensamentos mais dolorosos. Meruja mansinho no campo. A chuva de outono virá cheia de lamentos. Recolhe-se a lenha brava, lá mais em baixo rodopiam as folhas frias. Esperamos pela noite. O fascínio transcende a vontade. Abrem-se então os rios e os horizontes. Uma garça-real faz um voo rasante. O fulgor ganha sentido comum. O teu sexo cheira a rosmaninho. A ternura ganha a forma de uma viagem metafísica. O desejo veste-se de fogo e a luxúria transforma-se num orgasmo louco. O tempo fica morno na hora das trindades. No campo as giestas, as estevas, as urzes e a erva doce dançam ao sabor da brisa. Descem sobre a aldeia olhares indiscretos. O tempo cansado afaga o aroma breve dos lírios. Descansamos os corpos ao lado da ternura, onde o dia tarda. Corre serena a água no meio das pedras, o rio deixou de se lamentar. As sombras são agora redundantes. Aguardamos pelo fogo, pelo lamento dos salgueiros, pela súplica dos momentos, pela iluminação voluptuosa das distâncias, pela pose florida das giestas e das carquejas, pela serenidade dos pensamentos interditos, pelos mil e um aromas dos sentidos. Respiro o teu olhar lá onde a esperança se semeia junto com o centeio, onde se amanha a terra, onde as searas são promessas cumpridas. Começa a doer-nos a solidão do outono, os umbrais das portas que não se abrem, as pedras escurecidas, a penumbra nostálgica da névoa, as velhas casas, os tecidos por bordar. No outro lado da manhã caem gotas de orvalho, os sonhos repetem-se e as palavras enlouquecem. A saudade é agora uma espécie de alimento onde se cruzam a dor, a esperança e a consternação. A noite fica repleta de estrelas que não riem. Sinto-me um cavaleiro andante em desassossego. Coitado do Rocinante. A loucura é lívida, os delírios eloquentes, as bebedeiras aveludadas. Dos beirais caem gotas de chuva e palavras angustiadas. Vibra a noite. As emoções são delineadas em forma de silhuetas breves. Começam a morrer os anseios e as flores mais rápidas. A alvorada virá em forma de insónia, louvor ou serenidade. Amanhã é o dia de ceifar as Dulcineias.