Poema Infinito (394): Antecipação das estruturas
A água é o equilíbrio dos teus olhos. O vento adquiriu o tamanho triangular dos pássaros. As mãos ficam como arestas. Até o rio corre mais demorado. Dele nasce o embrião da noite. As palavras ficam densas como o sangue dos objetos. Transforma-se a liberdade num princípio evidente. Deus digita o tempo nas diversas direções do vento e transmite a morte pelos dedos dos ciprestes. Então tu ficas mais circular, com os dedos francos e o sexo em explosão. Existe nesta casa um espaço ventríloquo. A Lua repete as paredes. As estruturas adquirem um ritmo próprio, antecipando a incerteza dos ângulos da chuva. Os muros ficam transparentes. As montanhas deslocam-se. Todas as noites nos repetem. A cicatriz da memória estende os seus limites. Perseguimos a hidrografia dos pontos cardeais, os esquemas erodidos, lá onde o rio se inclina, onde os símbolos possuem um ritmo próprio, onde os dedos marcam a síntese das sílabas. A policromia da água liga os corpos aos subterrâneos. As palavras multiplicam os sonhos, invertem os gestos, tornam o tempo mais transversal, fertilizam a sintaxe. O tempo alarma os ponteiros dos relógios. Analisamos o fogo que arde dentro das certezas, a profecia dos números primos, toda a caligrafia que existe por detrás dos sonhos. Seguimos o exemplo do mar, a geografia das vozes, o traço epidérmico das gravuras mais antigas, o horóscopo dos incêndios, o perfil dos animais em reprodução. Estudamos então a temperatura dos sentimentos, o frio que se instala dentro da arte, o sigilo necessário do calor e do frio, a forma difusa dos conflitos, a lei das situações, o limite ilimitado da imaginação. Dizem que o amor também se dilata com o calor das palavras. O pão velho repousa sobre a mesa, as armas foram enterradas nos campos junto dos guerreiros mortos. Abre-se o forno. O pão novo rejubila. Os homens já esqueceram as armas. As mulheres deixam repousar as mãos nos regaços. O pão é a forma perfeita da paz. Enumeram-se crónicas e narrativas dos atos mais extremos, dos cercos, dos sítios de guerra, dos sinais da História, dos pátios dos mortos, dos reis embrulhados em raízes, dos sinais de luto, das armas que o tempo mediu, das lutas campais, dos vestígios duplos, dos adereços mais duros, da dor do gado, dos diversos costumes e da maneira de os usar. Agora é tempo de se tecerem os mantos e os prantos. É tempo de chorar. Colhem-se pedras para espantar os pássaros. As moças cantam o amor e o medo. Quanto mais arde o tempo mais o fogo alastra. Os nomes líricos nascem de manhã, no momento em que o sol surge no firmamento. Por vezes a chuva cai de forma diferente, calada. Todos sabemos que a dor é uma palavra rigorosa, quer seja breve ou prolongada. Cresce o nevoeiro no interior das nossas mãos. A casa ainda tem o mesmo nome, o mesmo ar furtivo, o mesmo tom baço. Exibe a mesma mágoa. Passamos as mãos pelos poemas que mais doem e sentimos o peso da sua germinação. O sol desvia-se de nós pelas ruas mais estreitas. Inscrevemos agora os passos nas pedras das calçadas, ou nas tábuas do chão da velha casa. A chuva opõe-se-nos. Antigamente, a nossa avó cantava-nos. Agora somos nós que a cantamos a ela, utilizando a sua mesa e os seus utensílios. Recordamos ainda o seu canto agudo, o tempo perfeito dos seus gestos, o modo exíguo de se lamentar. As andorinhas lembram-me o seu sorriso. A água do tanque tem a mesma vibração da que equilibra o teu olhar.