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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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26
Jul18

Poema Infinito (415): Filho de prumo

João Madureira

 

 

É de madrugada e permanecemos intensamente deslumbrados pela atrapalhação dos caminhos. Vivemos na memória das casas abatidas, derrubadas nos tempos da usura. Pelas suas fendas penetra agora o silêncio, ocupando os espaços opacos entres as paredes, ignorando a imensidade das tardes. Antigamente fechavam-se as janelas, os outonos eram sombrios, a luz ocultava-se nos orifícios do tempo, enquanto as leitugas bravas revoltavam os prados frios e lentos. Os nossos olhos agora enchem-se de lágrimas quando avistamos as casas cheias de silvas. O avô já não revolve a terra húmida, nem os homens malham o centeio na eiras, nem a avó retorce a farinha na masseira. Era esse o pão eterno que alimentava as bocas esfomeadas dos filhos tão amados. Perderam-se as casas, os sorrisos e os silêncios. Perdeu-se a inocência. Atualmente as madrugadas são longas como os caminhos. Esse tempo morreu. A infância ficou pendurada na memória, nela couberam as mil histórias das mil e uma noites. E as estrelas. E os rios. E também o voo das abelhas e os ninhos dos pássaros. Cozia-se o pão nos fornos aquecidos com giestas e ramos de carvalho. O avô andava de socos. E o reco morria sempre entre dezembro e janeiro, quando o carambelo ficava pendurado no colmo ou nas telhas, derretendo-se pouco a pouco com a nesga de calor produzida pelo sol que negligentemente brilhava entre as nuvens. Tínhamos as montanhas no fundo dos olhos. Os segredos eram pequeninos como formigas. A orquestra que ouvíamos era formada por grilos e cigarras. Os meninos eram piratas que navegavam em barcos de papel sulcando os regos de água. Todos os brinquedos, menos os apitos, eram feitos de madeira ou de lata. Consolávamo-nos com os cachos de uvas que surripiávamos das videiras. A sua tinta molhava-nos os dedos e os lábios. Era um tempo morno, cheio de ausências e regressos. As flores nasciam incansáveis na beira dos caminhos. O sons repetiam-se até à exaustão, sobretudo o chiar dos carros de bois. O lume estava sempre aceso e os aromas eternamente presentes. O tempo caminhava de forma incansável, como hoje ainda o faz. Falavam-nos em tesouros que nunca apareciam, em segredos que não desvendavam, em ressurreições que jamais aconteciam. Por vezes, as tempestades desabavam sobre as montanhas e a avó rezava: Santa Bárbara bendita... Brrum... que no céu está escrita com papel e água benta livrai-nos desta tormenta... Brrum... Onde vais Bárbara... Senhor vou ao céu a livrar-me das trovoadas... Brrum... Todos os medos regressavam às suas respetivas casas. E a avó tremia. E o cão gania. E gato fugia para debaixo do escano. E o pai fumava. A mãe benzia-se. E a avó rezava de novo. Nós ficávamos mudos como o tempo. Até o amor queimava as mãos. As vacas ficavam violentas e expunham a sua fúria dando coices nas tábuas da porta do curral. As memórias, essas, eram verdes como as maçãs da Clérga. O vento assobiava pelo meio da palha do centeio. As palavras cresciam como se fossem pavias. Ao serão, a família falava do rio que transbordava, do vento que tombava árvores, da forma correta de fazer vassouras de giestas, dos contos que ninguém sabia muito bem como acabavam. E diziam-se adivinhas. E contavam-se romances. Todas as crianças tinham luz nos olhares. Depois sentávamo-nos no escano de castanheiro com os lousas no colo e desenhávamos letras com o ponteiro. Foi nessas alturas que os poemas começaram a crescer dentro da nossa cabeça, representando sóis e árvores e pássaros esvoaçando no ar cálido do serão. Tudo isso guardámos no peto da memória. Também os nossos olhares medravam como os pães pelos outeiros. E brincávamos com as cerejas, com os pêssegos e com as palavras. Os cães ladravam nas eiras e as névoas espalhavam-se pelo rio e pelo vale. Consertavam-se as cancelas e as sombras. Nos palheiros explorávamos a sexualidade. Agora as casas vão morrendo abandonadas, afogando-se no esquecimento. Já não fumegam, nem os potes cozem a vontade de comer. Agora imaginamos o passado, recordarmos a chuva e os bois feitos de madeira, amansados pelas palavras frescas das crianças. Através da porta saem os astros. O lume apagou-se definitivamente.

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