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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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13
Set18

Poema Infinito (422): O vento da realidade

João Madureira

 

 

 

A vida é o destino do quotidiano como a ilusão é a outra forma da amargura. Depois ficam as sombras. E as promissões. E a confiança frágil das crianças. Uma muralha de gritos levanta-se.  Há no mundo tanta cobardia alucinada que amedronta. Antes da comunhão, a avó costumava repartir o vinho e o pão pelos de casa. Era uma espécie de alegria demarcada. Depois levaram-lhe o corpo, depois a alma e a terra comeu-lhe até a memória do próprio nome. Ficou dentro de mim a sua consciência e o tormento dos fantasmas invisíveis que alimentam o sono. Depois tu bateste à porta da minha solidão e rodeaste-me com a direção fraterna da tua ternura. Foi então quando perdi todos os pecados e deixei de pensar no inferno. Essa é ainda a paz permanente do meu desespero. Ardem-me os olhos com a nitidez das brasas e dos versos, com o protesto das cinzas, com a amargura do rio, com a voz da avó que cantou contra o mundo e contra a solidão. O esquecimento é outra das formas da loucura. D. Quixote andou sozinho a combater as velas dos moinhos perante as penas, as lágrimas e os lamentos de Sancho. Não me lembro quando foi feita a última colheita do centeio. Sei que o dia estava limpo, luminoso e cheio de ilusão. Já não há dias assim. No inverno seguinte choveu e nevou e Eva disse adeus ao paraíso. Já nada a comove, já nada a excita, já nada a martiriza. Os rapazes e as raparigas continuam alegres sonhando com a quentura das romarias do futuro. Os trovadores continuam roucos e os revolucionários sentem-se sempre os eternos desgraçados. Quando apetece cantar já ninguém canta, nem grita, nem foge, só chora. Van Gogh tinha razão, os lírios no seu apogeu continuam a parecer luminosidades. O vento da realidade vai espalhando as brasas da lareira. O borralho vai-se apagando. Fecham-se as portas. Continuamos a receber os sonhos e a abraçar a pouca luz que nos rodeia. O tempo conseguiu precisar uma nova definição de angústia. Os versos nascem como cogumelos no meio dos pinheiros. São como os sentimentos. Não distingo os venenosos. Especializamo-nos em adiar os outonos. Os nossos braços são agora como ramos tristes. Os sonhos e a alegria ardem em nós como velas meias gastas.  Também eu me senti um ribeiro que fugia da sua nascente sem querer. O sol partiu sem me avisar afagando as nuvens e fazendo a seu belo prazer uns dias maiores e outros mais pequenos. Quando se sobe um monte há sempre um momento para descansar. Também fazemos sempre uma pausa nas curvas dos caminhos mais difíceis. Foi numa fonte de água fresca que bebi o primeiro carinho. Foi na tua pele que senti que me surgiam os dedos incendiados pela tua delicadeza. Tudo então começou a tremer à nossa volta: a subtileza, a luz do tempo, os peixes do rio, as magnólias. Eras uma espécie de paisagem deslizante, rodeada de flores. É necessário salvar a infância da obscuridade, libertar e beleza da sua insensatez. Cavalguei então a tua grandeza de mulher, sentindo as tuas folhas e o teu sabor a maçãs. Percebi então que as paisagens também podem tremer de medo, que a luz pode ser inquieta e as festas dolorosas. Levantámos voo de mãos abertas. Aprendemos o ritmo do sexo com o corpos a arder. Fixei para sempre em mim a lembrança da tua luz, a forma de um paraíso azul, a forma de um grito narrativo. A alegria também pode ser aflitiva.

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