Poema Infinito (428): Pequenos milagres
Foram as tuas mãos aquelas que moldaram a eternidade da lua, as que mungiram as tetas das vacas e das cabras, as que se deixaram beijar pelo vento húmido da manhã, as que remexeram as folhas dos vinhedos, as que velaram os corpos dos meninos, os pães remexidos nas masseiras, os estios do tempo, o sangue das matanças e a vertigem egocêntrica das noites. Foram também essas mãos que apanharam os frutos mais deliciosos, que mexeram as brasas do lume, que abraçaram as crias, que acariciaram as cicatrizes e os sinais imperfeitos da vida. Essas mãos tinham calos que acariciaram os rostos e deram dignidade à comida e dissiparam as sombras e espalharam as sementes e afastaram as cobras e os licranços. Essas mãos por vezes ficavam furiosas tentando agarrar as rotas onde o destino encalhava. Mas quase sempre traziam o futuro. O quarto da velha casa ainda vibra com a tua ausência definitiva. Ainda recordo os teus gestos cheios de asseios, buscando o pão e a dignidade da vida. No quarto, agora o silêncio está repleto de vazio. Os aromas são apenas memórias olfativas. Descem da serra as nuvens anunciando invernia. O tempo continua a percorrer os velhos caminhos. Nos olhares das crianças continuam a pousar os pássaros. Do mal o menos. Nas poças do rio, as rãs criam os girinos que absorvem o verde da luz do sol. Falta tempo para ladrar aos cães solitários. Na cidade inóspita, os olhares das pessoas são como pedradas nos vidros das janelas. Prefiro as urtigas ao asfalto. O tempo desce sobre as coisas, sobre os olhos que encobrem as aves mais pequenas, sobre o silêncio que sucede ao embalo dos meninos. O vento bate na porta pintada de verde. A casa está despida de palavras. Os retratos perderam as cores. Já não há partidas nem regressos. As folhas acumulam-se junto ao muro do cemitério. Até a floresta está em silêncio. O silêncio. O silêncio. O silêncio. O silêncio sai devagarinho pela fresta da janela do velho quarto. Lembro-me de afiar os lápis e o silêncio. Eram então eternos os minutos, saltando de mão em mão, percorrendo as paredes e os gestos. A mãe enrolava novelos de lã para fazer meias, luvas e camisolas. Nas tardes de primavera, os sonhos transformavam-se em borboletas. Até o infinito ficava com as cores do arco-íris. Os brinquedos de barro escorregavam-nos das mãos mas não se quebravam. Os pássaros entravam e saíam dos buracos do tempo. Os filhos voavam de madrugada escondendo-se nos carvalhos. As palavras eram então leves como o sossego. Depois passaram a doer, ou porque eram difíceis de ler, ou porque eram difíceis de escrever, ou porque eram difíceis de entender. Muitos dos meninos assobiavam-nas, ou soletravam-nas ou choravam-nas. Sobretudo, evitavam-nas, como se fossem gadanhas. Afiava-se ainda o silêncio como se fosse uma machada. Queimava o sol temporão, queimava a ansiedade, queimava a dor. As manhãs da infância tinham muito giz, vento e espinhas. As lágrimas também eram muitos frequentes. Eu e Jesus sofríamos de sonambulismo. Depois passei a sofrer de cristianismo. E mais tarde de comunismo. A avó sofria de esperas. Tudo isso permanece fechado dentro dos livros feitos de folhas de milho secas. Íamos por caminhos retos e regressávamos por encruzilhadas. Os meus ouvidos ainda se lembram de como soavam as orquestras de grilos. Os seixos ainda estão na mesmo poça. A fonte, por milagre, não secou.