Poema Infinito (429): O desejo e o isolamento
Metidos no buraco, não alcançamos a linha do horizonte. Vence-nos a preguiça, na tarde morna. No verão, o sol é abrasador. No inverno, as geadas vidram os ribeiros e o frio mata os pardais. O pinhal continua a ser protetor e a guardar mistérios. Na casa da lavoura, as portas estão cerradas. A avó, o avô, a mãe e o pai já não sobem os degraus. Aqui não há portas traseiras. A cozinha fica do lado esquerdo e os quartos situaram-nos do lado direito. O tanque é apenas parcialmente visível. Entardece. Ouvem-se ainda os balidos mansos das ovelhas. A luz das candeias principia a desenhar sombras. Junto à lareira começam a contar-se histórias antigas, as intrigas dos vizinhos, enquanto o pote de ferro coze lentamente as batatas, as couves e as carnes. Da varanda, os mais afoitos assistem ao extraordinário fogo do pôr do sol. Para mim, esse é o retrato que representa o fim do mundo. Com a ajuda dos livros relembro os natais antigos, os quartos caiados, as candeias toda a noite acesas. Jesus tremeluze e os adultos olham com indiferença o presépio. O oiro e a neve são falsos. As crianças adormecem junto do calor da lareira. Lá fora, o imenso e silencioso céu permanece imutável. O isolamento atual é opressivo. As ruínas são irremediáveis. Já ninguém escora vigas, nem conserta caleiras. A nossa felicidade afasta-se cada vez mais. As manhãs de aguaceiros ainda possuem a mesma luz de prata. Lembro-me do agosto à beira-mar ter vento e levantar o pano das barracas e de fazer rolar os chapéus de palhinha para o oceano. Mesmo à beira-mar, a tranquilidade das igrejas era sombria. Ainda hoje continua a ser assim. O vento faz sentir nas pernas o chicote de areia. O vento faz voar o cabelo. Até a mãe parece uma alma penada bonita. Esse tempo media-se pelo calendário das festas litúrgicas e das procissões. Agora o tempo é outro. As construções são de cimento armado. Já não há vidros nos cafés para refletirem os sorrisos sensuais das raparigas, as meninas bonitas já não puxam as saias para esconder as pernas. A mãe e o pai já não fazem parte do nosso ambiente mágico. As tardes na província são como inaugurações sem direito a notícias. Ainda me lembro das meninas finas enterrarem os grilos mortos que lhes oferecíamos junto das magnólias do jardim público. Os seus olhos pareciam abelhas e os seus corpos conventos. Os seus hábitos eram tranquilos. A memória precisa de ventilação para não morrer asfixiada: as carteiras impecavelmente alinhadas, os mapas de Portugal e das colónias, o crucifixo suspenso sobre a secretária do professor. No pátio continuam melancólicas as macieiras, os diospireiros, as figueiras, as pereiras e as camélias. As meninas pareciam móveis novos pintados de velho, como se fossem flores sem tempo e sem cor. Pareciam hóstias irisadas, bonecas vestidas de sossego que se riam como se já fossem infelizes. As mais devotas sabiam histórias da Bíblia que misturavam com partes de filmes de aventuras. Triste sina é ter vocação para a escrita e nela não descortinar qualquer tipo de utilidade. A cidade é sempre o lugar da mudança. O comboio antigo já deixou há muito tempo de apitar mal irrompia a manhã. As dúvidas exaltam a tristeza. A escrita é uma espécie de milagre que permite recriar, com total liberdade, a criação do mundo. No entanto, a minha depressão ainda não atingiu esse grau de profundidade. Eu sou assim. Mesmo quando estou prestes a desistir, o som de passos ligeiros faz-me sempre ter esperança.