Poema Infinito (445): O espanto
Um mar de escrita rodeia-me por todos os lados. Penso que nasci de um banho de espuma perto de uma ilha ansiosa onde as ondas eram serenas, onde a água brilhava como se fosse feita de olhares, onde Deus costumava visitar-nos entrando pela janela. O tempo era estrelado e as madrugadas eternas. Depois chegou a tristeza carregada de palavras ditas e ouvidas. Sozinha. Por vezes, também aparecia a alegria, calada, com o seu cabelo solto, vestida de azul, como se fosse uma sereia penteada de areia e suspiros. Nasceram então as noites e com elas apareceram os grandes sonhos. As sereias cantavam no momento de eu acordar. Foi quando os sonhos ganharam asas e voaram de casa em casa. Eram ainda inteiros e conseguiam enfrentar o vento leste e os furacões. A tristeza chorava de pena e a alegria ria-se disfarçada de melancolia. Tu troçavas porque te dizia que me parecias a felicidade. Deus teve então o desejo de inventar o mundo, tornando urgente tudo o resto. Espantei-me. Espantámo-nos. O espanto começou a ficar lindo, a sorrir, a cantar e a sofrer. Amávamos as madrugadas. Deus inventou então as flores e as ausências. Depois fez-se desentendido e criou o purgatório, o inferno e o céu. Assim, por esta ordem, argumentando com a necessidade do espaço destinado a cada um. Muitas pessoas assistiram posteriormente à criação do fogo eterno e dos jardins da santidade com alguns bancos destinados a quem se cansa de esperar de pé, como convém. Os lábios dos anjos ficaram mais mimosos. E os palácios da eternidade foram decorados com vasos de jade, de esmeralda e de ametista. Também o mau gosto é infindável. Senti-me atormentado, como um pássaro ao frio, procurando os raios de sol logo pela manhã. Comecei o oscilar dentro dos meus sonhos. Quanto mais olhava, menos via. Nessa altura até os meus silêncios taciturnos cantavam. Por distração, Deus inventou a palavra felicidade sem conseguir definir concretamente o seu sentido. A eternidade ganhou a forma de um malmequer. As mães tricotaram uma estrela da tarde e regaram-na com o orvalho que recolheram nas manhãs primaveris da sua infância. As alvorada eram uma das formas possíveis de paraíso. O amor desconfia sempre do seu semelhante, da sua alegria. Somos sempre seus prisioneiros. Não vale a pena conservar a sua paz pois ele nunca sabe muito bem o que faz. Os mais crédulos começaram a semear a planta do amor. Nasceu ela incrédula, por causa dos seus espinhos. Esse caminho, dizia a minha mãe, não convém a ninguém. Os caminhos transportam dentro de si a sua própria condição. Tudo no mundo é instável. A lua, o vento, o mar, os cânticos, o sofrimento, a exaltação do desejo, a vida. E a morte. O passar do tempo torna tudo mais tranquilo. Quando entra em crise até os barcos deixam de navegar e os saltimbancos ficam carregados de reumatismo. Penso divertidamente nas histórias onde o fogo ardente aquece o reino da glória. Entendo, mas não percebo. Os príncipes dormem abraçados à Lua e despertam com os cânticos a Vénus, enquanto as donzelas dançam pelas ruas com saias floreadas e com os seus sexos húmidos de espera. Fazem-se de distraídas. Pousam então as mãos dentro da sua solidão. São naturalmente irrefletidas. Um vulto entra pela vidraça. A chuva começa a cair no jardim. Os trovões começam a afastar-se para longe. A vida recomeça. A ternura também. Ninguém procura a sua própria solidão.