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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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04
Abr19

Poema Infinito (451): Os espelhos e as portas

João Madureira

 

Os espelhos estão cheios de gente invisível que já partiu. Toco nas tuas mãos à procura de alguma memória. Acaricio o teu sorriso e rio-me também.  Desejo pintar o mundo no teu corpo. Diversos caminhos criam diversos destinos. O sol distribuiu as cores pelos campos e transformou os humanos em arco-íris. Serão os animais fruto da nossa imaginação? Nos desertos existiram lagos que pareciam mares. Todos nós somos boca e também bocado. Quem tem a memória longa lembra-se do tempo anterior ao tempo, quando o céu e a terra eram a mesma coisa. Deus primeiro perdeu a paciência com os homens. Depois foram os homens que perderam a paciência com Deus. As primeiras palavras escritas foram baseadas nas pegadas dos pássaros e desenhadas na argila com caninhas afiadas. O fogo que cozeu a argila guardou-as. Quem parte essas tábuas assassina a memória. Houve tempos em que as sacerdotisas eram queimadas vivas por participarem nas conjuras das tabernas. Um dos provérbios mais amigos diz que a cerveja é boa, o que é mau é o caminho. Os homens foram selvagens até descobrirem a cerveja e o pão. Essa era a dieta de Jesus. Sabemos agora que Adão foi tentado pela maçã depois de beber o sumo fermentado de uma uva. O primeiro milagre de Jesus foi transformar em vinho a água de seis talhas. Os antigos sabiam do que falavam: o tempo primeiro dá-nos de mamar, depois come-nos. O rei Gilgamesh recusou-se a morrer. Quis combater o tempo. Diziam-no filho de uma deusa e de um homem. Apesar de ter vontade divina, o seu destino era humano. Tanto ele como o seu amigo Enkidu eram feitos de barro. Perseguiu então a imortalidade: vagueou por estepes e desertos, atravessou a luz e a escuridão, navegou pelos grandes rios, até que chegou às portas do paraíso. Aí foi servido por uma deusa taberneira. Depois de atravessar o mar, descobriu o barqueiro que sobreviveu ao dilúvio, a erva que dava juventude aos idosos, seguiu a rota das estrelas, chegou assim lá ao norte e depois dirigiu-se ao sul. Abriu a porta por onde o sol entra e fechou-a depois de ele sair. Foi imortal até morrer. Todos lhe seguimos o exemplo. A beleza do mundo chega a doer. Como ensinou o deus Toth ao rei Thamus, a escrita é o melhor remédio contra a má memória e a pouca sabedoria. Por isso Ganesha escreve com mãos de gente. Na arte da escrita, o mais importante é o começo. As primeira palavras são como os primeiros tijolos de uma casa ou de um templo. Outras fazem lembrar o rosto sombrio do faraó Sesostris III, os seus olhos angustiados e os lábios amargos. Talvez pensasse como um humano de que a vida eterna não é um privilégio, mas antes uma maldição. É preciso desconfiar da incapacidade dos capazes, da fraqueza dos fortes, dos que estão perto fingindo que estão longe. É também importante conhecer os caminhos da contradição, pois eles conduzem ao lugar secreto onde Lao Tsé continua a fundir a água com o fogo montado no seu boi azul. É lá que podemos encontrar o tudo e o nada. Um sábio chinês ensinou-nos a ler estrelas, a adivinhar destinos, a desenhar palavras com sinais, a desenhar constelações, o perfil das montanhas e a plumagem das aves. Nessa altura existia uma terra onde as mulheres eram da cor da luz porque comiam sol. Ainda agora, as mulheres são uma porta de entrada que não tem saída.

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