Poema Infinito (467): A avó
Concentro-me na direção meditativa dos olhares. Uma luz rosada faz brilhar os luzeiros que se orientam na minha direção. Concentro-me nos gestos repetidos, secos e eficazes. Nas conversas breves, mas certeiras. Na imobilidade e no isolamento repentino dos animais. As rosas junto à igreja estão carregadas de aroma e de poeira. Poucos sentimentos conseguem sobreviver por aqui. Recolho alguns fragmentos da realidade. Flutuam no ar várias vozes e alguns ruídos secos. O tempo continua a perder velocidade. A avó costumava alisar as palavras com a mesma paciência com que passava as colchas de linho. Falar era já ficção bastante para se entreter. Por vezes caiam-lhe lágrimas dos olhos como se fossem gotas de soro a entrar nas nossas veias. Nunca aprendeu as histórias pelos livros. Inventava-as sozinha. Há pessoas fadadas mais para o não do que para o sim. Por vezes queixava-se de que lhe andavam a amputar as terras, a chupar a água dos lameiros e a roubar-lhe o odor das flores. Os homens, já bêbados de inverno e vinho, iam de encontro às esquinas. Vomitavam o frio antes de chegar a madrugada. As mulheres vigiavam as suas ausências. Choravam para dentro dos seus mistérios. Esforçavam-se muito para arrancar imagens dos seus olhos. Eles pareciam quase sempre ervas do mato, ou urtigas. Qualquer contacto provocava prurido. O vazio também possui a sua força de atração, bem assim como a maciez da água da ribeira. Ninguém sabe o verdadeiro sabor do poder reconfortável da repugnância feminina. A relação entre a vítima e o carrasco está carregada de excitação. A avó gostava de pentear ao espelho a sua pouca sorte. Namorou pouco, mas ficou desonrada durante alguns anos. Depois de desvirginada, foi sacramentada. Mais tarde, tudo voltou ao seu devido lugar. O som dos espasmos também pode ser uma falsa agonia. Apesar de noiva abandonada, a avó construiu pacientemente o seu círculo de brasas. Desenhou mentalmente a sua circunferência sentimental exata, ignorando o resto. Perder-se de amores não era a sua forma de indulgência. Controlou então o seu gosto por criar sobressaltos. Combateu a arrogância das proclamações fidalgas, enchendo-se de coragem cristã. Tudo o que não mata, salva. Na sua casa, as paredes estavam sempre pintadas com cal e o chão cheirava a sabão. Era a forma de preservar o seu fervor erótico de mãe solteira. Não deixou que lhe pagassem o seu silêncio. Disfarçava mal os deveres de obediência. A mãe cobriu-a de ameaças. Ela foi esclarecendo-se por dentro. O momento dos outros também nos envelhece. O significado das relações nem sempre é definitivo. A angústia e a glória costumam andar juntas. O padre apinhava-se de palavras de missal e despropositava-lhe a vida. As mulheres da aldeia continuavam a teimar na sua velocidade cíclica de reprodutoras. A avó começou a aperceber-se do poder de atração da loucura, mas não começou a fazer coisas disparatadas. Ela não era mulher para percorrer caminhos fáceis. Sabia que a glória não estava no arrependimento. A sua beleza, apesar de severa, era depurada e consistente. O seu talento para lutar contra a adversidade aperfeiçoou-se. Concentrou-se na fruta e na lã. Transformou o esforço em milagre. Quando o avô lhe fez outro filho estremeceu de ternura. Há coisas difíceis de entender, pensou ela.