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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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22
Ago19

Poema Infinito (470): Do lado do espaço

João Madureira

 

 

O lado positivo do amor resulta da predisposição. Gosto de jogar o jogo da intimidade e do repouso. A vida respira. Sinto os sítios com renovada ansiedade. O cio abre-se à liberdade. Depois é o desejo que se evade. É débil a oferta dos afetos. Acostumas as tuas mãos à tristeza da água. Os nossos olhos estão gastos de saudade. Por aquele caminho muito jumento passou a caminho do velho moinho. Colhiam-se amoras nas silvas. Dos campos já não retornam ternuras. Deus entornou o cálice da eternidade. A cor iluminada das lágrimas comove todo o tipo de inquietação. Dormem as sombras longe das estrelas. Os gritos são lisos e frágeis. Os suspiros vagarosos. Esta solidão provoca tonturas. O medo vibra. É débil a oferta dos afetos. A guerra é uma espécie de círio pascal que não para de arder. A paz é impura e gelada. O ódio é duradouro. Os homens são como os dias transitórios. É infindo o outono. O seu tecido veste o tempo. O tempo é uma aranha que constrói a sua teia com as horas a consumir. Durmo como um peregrino vagaroso e febril. Impõe-se então o mar com os seus gestos firmes e a sua profunda atração. Chega a névoa entre as árvores. As águas abrem linhas pelo meio dos aloendros. Duvido do tempo incerto. As terras estão de pousio. Os bois ruminam. As carroças já não sabem ir nem como regressar. O inverno matou as profissões que tinham acesso ao ar. Já não há quem ande lá por fora. Os animais pastoreiam sozinhos, limitados por cercas. As ribeiras tanto secam como transbordam. Os frutos apodrecem dentro da sua madura tristeza. O inverno repete-se. Continua a chacina dos animais. Os temporais devoram os caminhos das serras. Os sinais de ruína acumulam-se. Recordo as mãos dos lavradores a abrirem os sulcos na terra com os seus arados, os grãos de centeio a caírem como chuva na terra, os semeadores a progredirem nos sulcos, os seus vultos a movimentarem-se de impaciência. E também a vibração fixa dos olhares. Agora os fornos do povo estão frios. Os céus parecem curvados de tristeza. O desejo já não faz parte das suas vidas. O silêncio parece deter a próxima floração. Crescem as arestas. A chuva abafa os ruídos. Daqui vê-se o caos. A estabilidade das estradas de asfalto. Os declives. O ócio. Os mais velhos continuam com o vício de fumar saudades. Chupam o cigarro até ao fim. As janelas parecem arder por dentro. O esquecimento mata as lembranças. Qualquer dia Deus deita-lhes a mão. As saudades ardem mal.  Ali está a avó sentada como se fosse o sol-pôr. As suas mãos parecem uma tapeçaria. Os seus últimos dias foram feitos de linho. À sua despedida vieram pássaros lá das alturas e pousaram no corrimão da varanda. A mãe desfez a sombra com as mãos. E bordou nuvens. E lágrimas. E a dor que todos sentíamos. As palavras transformaram-se em círios. O presente e o passado deixaram de fazer sentido. O futuro deixou de existir. Sinto que preciso do campo. Das folhas e das brisas. Dos rios transparentes. A luz deixou de ter a firmeza de antigamente. O dia ficou claro. O vento serenou. Lembro-me como a avó comia os figos com pão. Caminho pelo campo verde como se caminhasse na lua. Passam os anjos com as suas espadas de silêncio por cima das muralhas. Sinto que pertenço a um outro espaço. A tarde sussurra tristeza. A dor transborda. O mundo acaba de acabar.

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