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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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31
Out19

Poema Infinito (480): As portas infinitas

João Madureira

 

 

Depois das lágrimas cintilantes do orvalho, durmo ao teu lado como um prisioneiro acabado de ser posto em liberdade. Movo silenciosamente os lábios. O amor não está engelhado. A pele provavelmente sim. Mas que havemos de fazer. Gosto do azul anónimo das flores campestres, da inclinação do teu busto, de sentir o aroma impenetrável das sombras. Procuro o teu sexo às apalpadelas. Sinto o seu perfume lânguido. A bruma envolveu as colinas. Os atalhos do prazer são ligeiros. A terra é húmida. Os lábios ávidos. Arde-me o que tu bem sabes. E o vento. E a nudez. Descanso num silveiral florido. Escuto a secreta sonoridade das folhas verdes, o murmúrio do vento, o ruído daquilo que vem de longe, a voz triste dos cucos, o singelo silvo dos besouros aveludados, as dissonâncias melífluas das abelhas escuras que zumbem em volta das corolas das flores. O teu bosque regurgita de vida. Crescem infinitas plantas pelos campos. No jardim, as pétalas caem como penas de anjos. A avó dizia que quando tudo estava lindo até os bichinhos andavam aos pares. A avó praticou pouco o amor, mas sabia amar como ninguém. A avó parecia um ramo de salgueiro: era bela e flexível. E possuía a florescência e a espontaneidade dos arbustos e das ervas dos caminhos. Os seus olhos eram sempre luminosos. Já o avô cedo ficou grisalho como um lobo. Imagino-os na penumbra do quarto sentados em cima da arca, de mãos dadas, enquanto lá fora as sombras lilases das casas se estendem sobre a terra fria e os rouxinóis cantam. O avô, como um belo cavalo guerreiro, estourou antes de tempo. A guerra não poupa ninguém. As Plêiades brilham ainda no Céu. Deus seja louvado. Agora até o Sete-Estrelo se transformou numa mancha indistinta. Sente-se ao longe a espessura misteriosa da floresta. E o cacarejar inquieto das pegas. Um vento triste teima em transpor o portão em ruínas e assobia nas janelas partidas. Estas janelas fazem que ardem, mas não ardem. O tempo e as intempéries continuam a cumprir a sua missão. As chuvas da primavera desmoronaram os muros e algumas paredes. Lá no alto circulam os ventos, flutuam as nuvens brancas e frias iluminadas pelo sol. O conhecimento deixou de assentar em almas mágicas. O suicídio de Deus foi visto do lado de fora. O equilíbrio, todo ele sem exceção, é uma questão de hábito. Tal como os poemas, também as portas são infinitas. Nalguns livros, algumas palavras brilham como pérolas. Houve um momento glorioso em que existiu um verbo. Apenas. Um verbo ainda sem coisas. Sobre os prados flutua um cheiro insípido a erva molhada. A floresta ribeirinha está coberta de uma névoa prateada. Os galos já cantaram pela segunda vez, não tarda que nasça o dia. Há cheiros que são infinitamente familiares. O cheiro a sol e a cabelo de criança. O cheiro a abraço. As pancadas surdas da memória trazem-nos aos olhos uma névoa de lágrimas. Só a beleza interior é pura. As despedidas demoradas são lágrimas inúteis. Aos silêncios frágeis, até os mais ínfimos ruídos os estilhaçam. Na cozinha da avó cheirava sempre bem, a carne cozida, a louro e a pão fresco.  Apesar da forte tempestade, o trigo ergueu-se de novo e resplandece ao sol. O dia encheu-se de uma intensidade asfixiante. A manhã parece um cavalo. Movo silenciosamente os meus lábios sobre os teus.

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