Poema Infinito (482): Respiração
Os corpos pousados sobras as pedras procuram apurar-se. Entra-lhes a luz pelas mãos. Os rios penetram pela zona da cabeça. Antigamente a fome era dura, rápida, urgente. A fome agora é lenta, vem sempre acompanhada da fartura que temos de rejeitar. Agora a fome é uma cura e a fartura uma doença. A fome é um vício, uma moda, uma necessidade. Os corpos incham vítimas das sumptuosas ironias da sociedade ocidental. Louvado seja o Senhor. O amor brutal transformou-se num campo de papoilas. Num canteiro as armas floridas, do outro lado as rosas densas como granadas. O princípio de uma coisa é sempre outra coisa. Uma ideia feita de palavras pequenas que, por incrível que pareça, aumentam o tamanho do nosso mundo. Vivemos num mundo de moda, até num mundo de moda literária, que é a pior de todas. Vendem-se livros amorosos envoltos em cuecas de renda. A raiva transforma-se em destino. Não desconfio das pessoas, mas também não acredito nelas. Os pés confirmam o caminho e o nosso caminhar. O céu, por vezes, fica de lado e nele passeiam nuvens que parecem pessoas cheias de gravidade, afetos e verosimilhança. Cada pessoa começa a nascer de forma invisível, como se fosse um Deus. Os dedos da avó continuam a aquecer o pão. O seu sorriso voa dentro de nós. A imagem da noite é redonda. As metáforas ardem como se fossem velas. O silêncio prepara-se para nos seguir. Regressam as pequenas alucinações. Amanhã resplandecerá a neve no cume dos montes. Observar essa paisagem transforma-nos, por vezes, em anjos. O vento da serra virá envolto em cristais de gelo. No meio deste abandono ou se fica santo ou doido. No pátio lajeado ouve-se o ressoar dos cascos do cavalo do tio João. O calor chega-nos vindo de um lume de cerejeira. Na capela do monte vivem os espíritos da aldeia. Depois do apocalipse partir-se-ão os sete selos. As conversas com Deus continuam cheias de banalidades. A intimidade aproxima-nos da solidão e desperta em nós a confidência, o pretexto para os desejos e para o vício. Agora nomeiam-se as ilusões. O cinismo é muito mais velho que as igrejas. Provavelmente anterior à honestidade. As sombras por aqui estão mais lentas. E o sono por vir. Estou em crer que, a chegar, chegará tarde. À minha volta acendem-se as imagens todas. E sinto que levedam como o pão dentro da masseira embrulhado em lençóis linho branco. O problema está nos efeitos secundários que provocam. Onde há medo, há dor. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar. Escuto o ritmo da respiração. A janela parece estar longe. Percebo agora melhor os buracos e as aberturas, o nascimento e a morte. Mas de pouco me vale. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar. A porta parece estar longe. A memória da mãe parece uma máscara de teatro japonês Nô. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar. As escadas parecem estar ainda mais longe. E a varanda. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar. A memória do pai parece uma máscara de teatro japonês Nô. A maldade alegre da demónio cintila lá ao longe. Lembro-me de cair no meio de um buraco cheio de silvas. Voltei todo arranhado e com bagos de sangue nas mãos. A mãe chorou por cima da taça de amoras que tinha colhido. O nevoeiro saltou a cerca. A chuva cai ainda com mais força. Inspirar. Expirar. Inspirar. Expirar. Alguém sobe as escadas para o alpendre. Levanto a cabeça e vejo-te sorrir. Já posso adormecer.