Poema Infinito (484): Ecos
Uma luz fria flutua por este início de inverno. A manhã mergulha na névoa. A iluminação interior brilha na palidez do spleen. Cada árvore do pomar já escolheu o seu próprio deus. E cada coisa possui o seu demónio de estimação. Nenhum vestido resiste a uma festa eterna. Convém não misturar o céu com a terra. A sorte resulta de um certo tipo de geometria imprevista. O murmúrio é um rio de segredos. A luz produz a sua própria sombra. E a sombra produz o seu próprio assombro. Junto das cerdeiras, os melros desenham os seus voos nupciais. No pouco tempo da infância, o medo ganha alento dentro de nós. Atrapalho-me ainda hoje com a densidade dos olhos dos peixes que a avó cozia no pote. Sofro também com a voz do vento, com o insuficiente amor dos milagres, com os restos e as migalhas das tardes, com a posição fixa das estrelas, com a memória alegre que mata o amor das personagens tristes. Por vezes sinto os campos a tremerem. Nos cavalos guerreiros cintilam os arreios. São como segredos. Os seus olhos estão repletos de mágoa. Nos meus olhos misturam-se as nuvens, as flores, os campos e as ondas do mar. A vida flutua no rio como se fosse luz. Esta paisagem foi a última que restou do paraíso. Vagueamos entre o lado da raiva e da aflição. Apercebo-me do tremor delicado dos teus lábios. Os frutos mais serenos estão nos ramos mais altos das árvores. Parecem longínquos os pássaros que pousam sob os ciprestes. Também o vento que sopra das montanhas parece mais longo. Sinto a paciência a subir de elevador até ao ponto mais elevado do castelo. Os segredos costumam abrir os olhos dos incrédulos. Os deuses devoram a memória, alimentam-se dela. O exílio é a nossa pátria. As metáforas ardem-nos na língua. Reescrevemos a deslumbrada afeição dos versos. Foi a avó que me ensinou a lavar as palavras, a suspender a luz do crepúsculo, a definir a linha do horizonte, a distinguir o canto do melro, a definir a expressão da ausência, a apreciar o ritmo da chuva, a serenar os peixes. Lembro-me do calor fixo das mãos do pai. Debaixo das pontes escondem-se os mistérios. Sinto o peso denso da sonolência. O amor. O desprezo. Sinto-me no limiar da indiferença. A felicidade escolhe as mãos onde quer acomodar-se. O tempo equilibra as verdades e as mentiras. O tempo leva-me para outros caminhos. O desejo vem em meu auxílio. Pouca esperança haverá para quem gosta do frio. Sopram-me ao ouvido palavradas desnecessárias. A ternura é tímida. Quando suplicamos pelo infinito, perdemos tudo: os abraços, as perguntas, a limpidez das brisas, a órbita imensa da diferença. A Bela adormeceu por ter engolido uma borboleta cega. As paredes do seu palácio unificaram-se. As janelas abertas, fecharam-se. A névoa fundiu as montanhas. Os animais ficaram imóveis como se fossem de barro. As palavras velhas caem como se fossem folhas de outono. Parecem figuras sem rosto. A pietà esculpida em granito, que encima o pelourinho, encheu-se de líquenes. Cristo cristalizou no seu próprio sofrimento. O seu olhar piedoso assusta. Sinto-me deslizar pelo meio da impalpável luz das estrelas. Tempero a memória. As minhas raízes estão fora deste tempo. A casa fechada esfria ainda um pouco mais. Parece que vejo pirilampos. Oiço o eco do mar. Brotam lágrimas feridas de morte dos olhos da mãe.