Poema Infinito (486): Dissidências
O mar, por vezes, pode ser absoluto. Como o amor. Como a morte. Como o céu. Antigamente havia muitas sereias espalhadas pelo Mar do Norte. Mataram-nas com ferros, como se fossem baleias. Deram todas à costa e aí apodreceram como se fossem judeus em Treblinka. Os mares do Oriente possuem muitos corais e pérolas, mas nunca possuíram sereias. É monótona a solidez da terra. E o grande mar foi sempre uma ilusão. A minha experiência é uma espécie de metamorfose, quase perfeita, quase lúdica, quase épica. Para se ser cavaleiro tem de se possuir um cavalo e muita coragem. Falo com a água como se fosse a minha mãe. Tenho-lhe medo. E amo-a. A sua face é espantosa. Adormeço da viagem em cima da espuma breve do mar. Os capitães dos navios mais velozes costumam enamorar-se das estrelas mais tristes. Nas paragens da vida somos todos estrangeiros. Detenho-me então à beira dos teus olhos. O desejo é uma espécie de itinerário invisível, repleto de cargas ocultas, de vínculos desconhecidos. É durante o voo que os pássaros se perdem. É tudo tão imenso! É tudo tão pequeno! É tudo tão precário! É tudo tão imenso! E as surpresas são tão breves que nem se deixam saborear. A brisa penteia o verde da seara. Borboletas brancas e pássaros imprevistos descem sobre o meloal. Lá fora, crescem as uvas e o trigo. As árvores parecem símbolos instintivos. O ar da noite sussurra silêncios. As vacas sentadas mastigam a sua própria solidão. Todos temos cara de anjo quando nascemos. E quando morremos. É a morte que nos une e a vida que nos separa. Lembro-me de Soljenitsin: manipulados e dissidentes somos todos nós. Foi a dialética que nos tornou tristes e quase inúteis. Todos sentimos dor quando se desfraldam as bandeiras em tempo de guerra. A nitidez das espadas é sempre fria, faz demorar a narrativa e torna a memória fugidia. Dizem que já me sobra um pouco de sombra. Cortaram as asas às alegorias, tiraram a clareza aos sorrisos. O passado já não faz parte do futuro. As pequenas coisas estão datadas e as grandes passaram a ser ingratas. O paraíso corresponde agora à ausência de felicidade. Estão pregadas na memória as velhas palavras, as curvadas figuras humanas, as paisagens mais frágeis. Regresso de novo ao esquecimento. As águas continuam a passar. Tudo parece ter mudado: as nuvens em pousio, o azul do céu, o desenho fino das montanhas, a alegria dos cantos, a tristeza, a comoção, a coragem de Deus. Fecho os olhos e caminho. Absorvo as alturas. A origem do mundo deixou de ser divina. As ondas dançam, a espuma desliza, as areias estão sujas. A árvore divina dobra a noite. Disseram-me para voar quando ainda não tinha asas. Cai uma neve longa e solitária. O seu silêncio é suave. Oiço então o suspiro falso da eternidade. Observo o rosto calmo da aldeia. O tempo dissipou já quase todos os nomes dos que por aqui passaram. As velhas senhoras varrem as pétalas das flores que ornamentaram os mortos. Usa-se agora um silêncio diferente para marcar a dor. Tudo tem uma necessidade diferente. As memórias estão cada vez mais imóveis. Os pensamentos parecem metálicos. Os gestos assemelham-se a setas. Apesar de parecer imóvel, o tempo leva-nos sempre para a frente. As lágrimas já não são de contentamento.