Poema Infinito (487): As coisas ocasionais
Não há coisa mais dilacerante do que a indiferença dos outros quando se está apaixonado. As gralhas desenham os seus voos contra a luz rosada do entardecer. Toda a luz. Tu és toda a luz. Cintilas como um pássaro. Costumas cuidar das palavras mais frágeis. Transformas em carícias as palavras que me dizes. Para quê regressar ao passado? Essa é sempre uma outra forma de sofrer. Lembro-me do rio. De atirar pão aos patos. E a vida ia crescendo. Atravesso o tempo e todas essas emoções. Depois alcanço a alegria e o medo. E o voo dos pássaros que logo a seguir pousam nos ramos. E a mãe a coser e a arranjar a roupa de tesoura na mão. E as aventuras, as corridas, as querelas, as histórias de amor. E também os estudos. E depois o trabalho. O trabalho. O trabalho. E as águas do rio sempre a correr. E os teus olhos brilhantes. E o vestido sobre os joelhos. E a nitidez das árvores. E a doçura da intimidade. No sótão apenas resta a poeira do gesso caído e restos de ninhos de pássaros. O som das portas é frio. A verdade é que continuo a ver dentro de ti uma luzinha. Não é bonito andar de um lado para o outro com a luz apagada dentro de nós. Já chegou o tempo em que o corpo começa a desbotar. O parque está repleto de folhas espalhadas pelo chão. Sopra um vento morno. O céu está salpicado de estrelas. Este é o meu pedaço. As constelações são coisas ocasionais, como os pássaros em voo. O tempo não coincide. As estrelas têm um. Nós temos outro. Acordei deitado em cima de restos de sonhos que não consigo compreender. Oiço e vejo as coisas de lado, como se fosse uma figura egípcia. Oiço o tamborilar da chuva. Como era agradável o seu som a bater na chapa da casa e a rumorejar logo pela manhãzinha no telhado da varanda. Ouvia o sussurro da folhagem e punha-me a ler, ajudado pela luz do amanhecer. O verão já não me traz a paz de antigamente. Hamlet dizia, e com razão, que o tempo está fora dos eixos. O tempo não enche o espaço até ao extremo. O que sobra é ainda mais vazio do que o vazio. Com os anos, os buracos do sistema do mundo são cada vez maiores. As pessoas é por aí que desaparecem. Pairo por cima do vazio. Algo invisível apaga as frases mais curtas. Apesar das noites serem intermináveis, os anos passam a galope. A relatividade é uma coisa fodida. Tal e qual como o amor. Dizem que os pássaros conseguem introduzir o esperma em pleno voo. Alguns dias ganham sentido quando passam. A eternidade tem a forma de um seixo redondo. Nascem do luar algumas palavras calmas. As tristes foram há pouco com o vento. Os deuses dos campos vão recolhê-las para mais tarde as transformarem. Das confusões, nascem as vertigens. Cada cavalgada leva ao seu destino, cada pássaro ao seu ramo, cada borboleta ao seu limite, cada momento de glória à sua melancolia, cada sonho ao seu corpo. O silêncio tenta explicar-se através da memória da mãe. Nas pedras, sentados à sombra, respiramos a frescura e o verde que a rodeia. Lá em baixo, o rio transporta o dia até ao mar. Convalescemos da alegria rápida que nos atacou. O vento traz-nos o cheiro a rosas silvestres. Ainda somos donos do caminho que nos falta percorrer. Caminhamos de mãos dadas, aprendendo a linguagem destes lugares. A madrugada começa a impor-se na aldeia. As glicínias escorrem orvalho. É preciso que existas. Pois é bem verdade o que escreveu Joaquim Pessoa: “Cada vez nos temos mais apenas \ um ao outro.”