Poema Infinito (492): A cama dos olhares
Eu dou-me melhor com o caos. Sempre quis ser artista. O quadrado é sempre a pior representação de ser humano. A luz do lago sobe entre mim e as árvores. A paz é uma alma frágil. A pouco e pouco, o horizonte vai ficando mais nítido. O cume da torre da igreja ergue-se para a auréola cinzenta da madrugada. O fumo espalha-se por cima das casas. Os primeiros raios de sol assemelham-se a poeira pairando no ar. A pena do gaio ainda está dentro da caixa que o padrinho me deu nos meus anos. A luz da manhã brilha por entre as folhas tenras. O silêncio por detrás das portas ainda é maior do que nas ruas. O frio voltou. O gelo bordeja as poças de água. Durmo embrulhado no capote do pai, com as mãos cruzadas entre os joelhos, como ele fazia. Ainda tenho na boca o sabor a pão e a queijo que comi durante a tarde. A luz do entardecer enche de sombras os caminhos da Ribeira. Farrapos de nevoeiro estendem-se sobre o pequeno vale. Não se vê uma única pessoa. A faixa risada do entardecer a leste serve de cama ao meu olhar cansado. As ruas da aldeia possuem traços antigos das lágrimas. Pombas voltejam sobre os pombais arruinados. Encho o copo com a água da fonte que continua a correr por detrás da escola abandonada. As videiras deixaram de ser podadas. A vida é como a água, escorrega entre as pedras. Sonho em ti. Por isso te escrevo, pensando nas hortênsias luminosas com que brincam as crianças e na cerejeira da Clérga que no verão se enchia de frutos vermelhos e carnudos. Psiu, psiu, psiu, diz a alma da avó. A noite ficou inconsolável. Os pássaros adormecem fatigados e medrosos. A erva recebe o orvalho que pela manhãzinha se transformará em prata. Por essa altura, as formigas pretas começarão a percorrer os seus insondáveis caminhos. Nalguns lugares do monte ainda é visível o prestígio dos lagos imensos que cobriram estas terras. Lembro-me de as crianças brincarem com a estátua da fonte e também dos pássaros pousarem na sua cabeça e, depois do banho, voarem rumo aos seus destinos. Diante dela, agora ajoelha-se o silêncio e o pequeno deus dos mistérios insondáveis. Os homens e as mulheres sorriam como crianças. O meu tempo prolongara a tarde. Deito-me em cima de uma cama de fetos. O céu assemelha-se a um reflexo de luz. Um pânico súbito atravessa o ar junto ao rio. A poeira cobre as folhas frias. A luz matinal cintila nua como se tivesse chegado do Big Bang. A silhueta do amor tende para o infinito. Os teus olhos parecem brinquedos com que os nossos filhos brincavam. Costumavas guardar-lhes os segredos no teu regaço enquanto dormiam. A primavera parecia ser eterna. Os seus sorrisos caminhavam sempre na tua direção. Os seus beijos sabiam sempre a inocência virgem e eram tão livres como as papoilas no meio dos montes. Andei pelos caminhos das tuas esperas, escutando os dias, falando sozinho, escutando as horas, assobiando como o vento, curvando esquinas. Olho para o escuro e sinto a minha mãe mexendo nos potes, preparando a ceia, depois de trabalhar no campo. O avô contava histórias. Eu montava no cavalinho que o meu pai acondicionava nas pernas. À minha irmã saltavam-lhe os olhos de tanto falar com a boneca. Percebo agora o canto triste dos grilos e dos pássaros que eu engaiolava. Lembro-me. E o silêncio das memórias atordoa-me. Este silêncio não tem retorno.