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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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07
Mai20

Poema Infinito (507): A aflição

João Madureira

 

 

Às vezes as coisas são tão belas que quanto mais as olhamos mais sossegados ficamos. E depois do sossego vem a aflição. A aflição. Os bandos de patos cruzam-se no ar. Por vezes, o sol parece nascer no meio dos rios. Os rios não têm antiguidade. Nos olhos das nossas mães aprendemos as cores do mundo. Algumas palavras parecem impossíveis, mesmo depois de pronunciadas. Os versos caem das nuvens como se fossem chuva. A madrugada choveu puríssima. Sinto as nervuras fibriladas do teu sexo. A sua pureza. Os seus lábios. Os seus sucos. E a velocidade instantânea que produz os orgasmos. As avalanches humanas começam assim, como música dodecafónica, amando os alaúdes, indo desde Névoa até São Petersburgo. As grandes viagens começam sempre com a saída de casa dos pais. E acabam com o regresso do filho pródigo. Em todas as praças se encontram pombas. E estátuas. As grandes cidades são organizadas através de dilúvios gramaticais. Todos parecem nadar para se salvarem uns dos outros. Vivem ao ritmo dos semáforos. Preenchem as tardes como se fossem acrobatas. E tomam decisões irreversíveis antes da aurora, enquanto fumam o último cigarro da desilusão. As cidades parecem núcleos atómicos que produzem metamorfoses cerebrais. O amor, por lá, possui a mesma pressa dos comboios subterrâneos.  Aqui domesticam-se os pássaros e os gritos e o sol e a chuva. Por aqui, agarramo-nos às aves em pleno voo e às sementes e ao espaço e à imobilidade tranquila da tarde e à seiva das árvores e à incerteza do tempo. Por aqui afinam-se as memórias. As mais importantes do avô têm a guerra dentro e algumas cadências que diz nunca ter entendido. Nem todas as memórias são para entender. Muitas delas nem sequer fazem sentido. São como pêndulos invertidos. O seu tempo é curvo. As praças da memória costumam ser grandes e ter crianças dentro a jogar futebol com bolas de trapos. E pessoas estranhas nos jardins. E risos. E piqueniques. E primaveras disponíveis para amar. O vento agita os ramos dos salgueiros. O tempo tem outro tempo nas terras pequenas. O frio aqui parece gente. E o sol parece Deus. E Deus parece uma coisa sem nome. Os homens cantam em coro e as mulheres levam os campos trigueiros para dentro da igreja. Ouvem-se ao longe os guizos do gado, enquanto a luz alastra. Os dias parecem imersos, alongados pelo esforço da gente. As soluções são como quedas. Aqui nasce-se amarrado à família e à genealogia. O paraíso também pode ser uma prisão, se não tiver um caminho de saída. Aqui os dias sobram, quando a noite minga. Parece que as árvores choram. A sua sombra é nítida. Depois do regresso é tempo de descansar. A cerejeira já não beberá mais gotas de chuva. Alguém lhe torceu as raízes. A memória também pode ser um laço. O jardim está colorido de glicínias. As folhas dos carvalhos parecem luvas. Dizem que os poderosos vestem fatos para orar. Alguns tiram bilhetes de identidade eclesiásticos para se identificarem perante Deus. Por isso gostam de ir ao Vaticano falar com o Papa.  A palavra é um pequeno arado que lavra até a terra mais árida. É primavera, a morte das flores ainda está longe. A memória da avó está em pranto. A avó morreu bordando o seu último dia com o olhar. Disse, no fim, que não queria ser escrava da eternidade. Ao longe ouvia-se uma música triste.

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