Poema Infinito (508): A liquidez
A verdade é algo que brilha por si mesmo. Acho que o meu pai herdou da sua mãe o silêncio. O seu silêncio era uma espécie de renúncia à palavra. Já a mãe confundia sempre a importância das coisas. Relevava sempre as mais insignificantes. Agora contemplo a dissolução do passado. Sinto-o como uma espécie muito subtil de furacão. É lá onde sofrem os espíritos. Os dias continuam a filtrar a luz. Subi as escadas. O silêncio, a princípio, pareceu-me certo. Depois começou a assustar-me. O nascimento é uma espécie de colisão frontal entre o nosso corpo e o tempo. Existe o Mal. E existem as suas vítimas. E depois existe a compaixão pelas suas vítimas. Mas, no seu interior, só existe o desprezo. As pessoas apenas amam os heróis. Não as vítimas. Os ritmos dos nossos corpos andam desencontrados. Aprendemos a descarnar as horas, como os antigos faziam com as espigas de milho. O amor é agora mais sonolento. E o cansaço mais minucioso. Cai em cima de nós como um ritual. Contamos o tempo desde as primeiras horas da manhã. O tempo parece uma centopeia. Muita gente fala agora a nosso respeito, de boca fechada. Do nosso crescimento. Medem depois os dias como se fossem comerciantes de tecidos. Não sabem que regressamos aqui atraídos pela luz que dá vida aos campos. O passado parece Deus. Possui a mesma forma de presença ausente. Veste-se com as mesmas cores do pôr do sol. Os ciprestes são os mesmos. Os pássaros também parecem os mesmos. E os caminhos. Dizem, no entanto, que as manhãs custam mais a nascer. Fico com a sensação de que perco parte da visão quando olho na direção da velha casa dos avós. Este é o sítio onde não se pode negar a morte. Houve tempo em que penteávamos as ruas. Gostávamos de as encontrar desprevenidas e disponíveis para amar. Os seus cantos eram silenciosos. Por vezes andavam por lá mendigos. E cães. E namorados de mão dada, olhando distraidamente os vasos de flores, como se o amor fosse eterno. Gostava de esperar por ti na entrada do cinema, depois de comprar o Tintim no quiosque. Muitas vezes punha-me a olhar para a montra da alfaiataria, enquanto ouvia uma gaita de beiços ao longe. Ou o som de um violino. Trazia o cinema dentro da minha cabeça. Nas esplanadas bebiam-se cervejas e gasosas, enquanto os mais céticos liam o jornal e viam passar os carros com uma certa inveja. As mulheres e as criança mastigavam bolos. Alguns casais davam as mãos ao tédio, abúlicos, conversando sobre temas nasalados. Os magalas esperavam pelo comboio noturno. E havia os domingos que escorriam como se fossem narcóticos da discordância. Toda a semana persistia como se fosse segunda-feira. O fastio era uma espécie de coincidência. As figuras estagnavam na sua simetria, lentas como o sol e exatas como a morte. Até as páginas dos livros eram líquidas como as tardes de inverno. O fumo do tabaco era áspero. Os nossos corpos pareciam tábuas. Quando nos acariciávamos parecíamos bichos intercetados. Tínhamos a ficção no rosto. Sentíamo-nos amalgamados pelo amor. Agora negamos as ausências. Tudo se vai transformando em vidro. Até os pássaros parecem vestidos de verniz. Já só contamos para a economia dos fragmentos. Queremos acreditar que o sexo é um fenómeno cerebral. As dúvidas passaram a ser concêntricas. Os ramos da velha árvore entraram para dentro do espelho do quarto.