Poema Infinito (514): Névoa
A névoa desce sobre a terra e eu começo a sentir-me incorpóreo. Uma espécie de trepidação percorre-me o corpo. As emoções voltaram a incendiar-se. O medo aumenta o vazio. O verdadeiro orgulho é sempre silencioso. Nas confissões tinha de procurar alguma coisa de que me acusar e, a verdade, é que nunca encontrava esses pecados dentro de mim. O arrependimento era sempre feito por antecipação. Nas noites de muito luar, o rio brilha como uma cobra. Quando queremos ver demais, os olhos costumam atraiçoar-nos. Foram os homens esplendorosos os que construíram e acabaram por destruir as civilizações antigas. Toda a nostalgia é um cadáver tardio. O seu fascínio é uma festa implacável, onde se evoca Deus, o tempo, o sol e o mar. Os nossos antepassados, todos eles, viajaram em caravanas de nómadas dominados por uma sabedoria meridional que vinha das florestas e tomava o caminho do norte. Os seus corações eram vulcânicos e batiam com violência. Depois sentiam crescer dentro de si a amargura. Viviam em crescente sobressalto, por isso os seus olhos estavam sempre dirigidos para longe, para as cidades de Deus, que nunca conseguiam atingir porque estavam demasiado altas. Os pátios com ervas parecem agora mundos fechados. Apenas se ouve o som monocórdico do sino. São as palavras que conferem a clareza transparente do sentido do universo. Apenas as palavras são capazes de dar sentido àquilo que não tem sentido nenhum. Só elas nos permitem ver aquilo que está oculto. A verdade é que a literatura não pode ser invadida pelos cardos ou pelas rosas. Cada qual reencarna na sua própria personagem. Há uma coisa que é inevitável: a perda. Comecei a escrever em cadernos exíguos e também numa ardósia. A literatura era escarlate e escaldante. Agora já poucos ruminam os clássicos. A vida possui o brilho e a consistência de uma bola de sabão. A transitoriedade possui uma magia especial. As memórias começam a gotejar, como se fossem sangue. E as emoções começam a cair como se fossem lágrimas. Por vezes, tudo nos sucede em simultâneo. A nossa parte invisível é sempre a mais extensa. Daí o ceticismo humano. As urzes em flor fazem-me sempre lembrar a minha avó a andar de um lado para o outro, como uma lavandisca. Lá fora ouvia-se o tilintar das campainhas anunciando que se ia dar de beber às vacas, ainda antes da ordenha. Uma nuvem suspensa de fina poeira filtrava os raios do sol poente. Sentia-se ainda um intenso cheiro a feno no lado poente da aldeia. Na encosta virada a norte a erva era densa. Por lá voavam codornizes e brincavam crianças e nadavam patos e gansos no riacho. Havia perto um grande bosque. Também eu acreditei que em conjunto se podia mudar o mundo. A realidade faz envelhecer tudo. A mediocridade acaba sempre por triunfar. A vitalidade não é indomável. Ao crepúsculo, sentimo-nos sempre numa encruzilhada. Pensamos muitas vezes que queremos ficar sós, mas dependemos sempre dos outros. Depois das dissidências pontuais, e das debandadas repentinas, voltamos sempre ao círculo familiar. É difícil medir a desgraça das pessoas. Tudo está em silêncio: os campos verdes, a parte da infância que ficou doente, as tardes de chuva, as casas que estão a morrer, as janelas fechadas, as portas apodrecidas, a ribeira que se vai perder no mar, a luz da fogueira. O crepúsculo.