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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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09
Jul20

Poema Infinito (516): A sombra imutável

João Madureira

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Os peixes nos mares profundos serpenteiam nas trevas. Cá por cima, os espaços deixam-se penetrar pelo sol. Éramos felizes quando saíamos das aulas e passeávamos as pastas em liberdade. A alegria podia ser barata, mas era arrebatadora. E cobria-nos as faces. Por vezes íamos ao cinema. O entardecer fazia-se com uma luz amarelada e azul. A praça brilhava. Parecia sempre triste e lívida. As raparigas costumavam comprimir flores entre duas folhas de mata-borrão e prensá-las dentro de dicionários que evitavam consultar. Tínhamos pena dos pássaros que morriam de frio no inverno e tombavam das árvores como se estivessem embalsamados. Era difícil encontrar moedas nos bolsos para comprar o Tintim e o Jato. Ler banda desenhada era muito importante. O passado enriquece-nos. E a experiência. E o facto de termos amado a pessoa certa. Andávamos de cá para lá sem grandes expectativas. E os jovens namoravam de forma silenciosa, acariciando-se discretamente, como se estivessem a rezar baixinho. A audácia é uma espécie de prazer melodramático. Por vezes sinto-me a rejuvenescer, apesar de estar a envelhecer. Há pessoas que veem tudo ao contrário, confundindo precipícios com colinas. Mas é a floresta de Dunsinane aquela que se move e nos derrota. Os druidas sabem escolher as sombras tutelares onde decidem estabelecer as suas conferências. Para curar os espíritos é necessário captar a energia dos locais. Nunca consegui pescar porque os peixes nadam diretos às minhas mãos e escapulem-se sempre que os tento agarrar. Eu espero, eles observam. Eu observo. Eles esperam. Segue-se o desespero. A porta da aldeia está junto ao rio. Muito próxima das suas margens. Por ela entra o cheiro a leite materno. Devemos abrir poços, mas nunca tão fundos que descubram os velhos demónios. O sexo, sobretudo o feminino, procura uma saída para a crise existencial. A mortalidade multiplica a estranheza. As indicações labiais são sempre úteis. E a vida missionária. E o vestuário em chamas. E as leis da maternidade. Nas ruas, o perigo é mais evidente. Os corpos maduros, nas pandemias virais, apagam-se como lâmpadas. Sobre eles descem as aves do desaparecimento. Sentimos então a ausência dos campos de lilases e o torso crepuscular das montanhas. A totalidade da morte desaloja toda a poesia. As cidades ficam pálidas. Parecem construídas de febre, repletas de posfácios e de palavras interditas. Tentamos, em vão, repor os sítios no seu sítio e definir algum espaço útil. Por alguma razão, os gigantes são seres solitários. É nas zonas subtis onde melhor se propaga o azul. As mulheres atravessam o nevoeiro. As suas dúvidas são brancas. As suas mãos parecem fogo. É o umbigo que nos liga ao infinito. É de lá que viemos. A finitude surge sempre depois. Parece uma mulher nua que se vai engelhando. As tragédias fazem-se, não acontecem. A compreensão do mundo exige uma duplicação das palavras. A tua voz tem agora uma geometria estranha, como se tivesse medo de permanecer. A memória passou a ser uma espécie de árvore definitiva. A sua sombra é imutável. Esta serenidade é líquida. Agora bebo a linguagem do mar. A tarde arde até ao crepúsculo. O silêncio prossegue o seu destino cego. Temos consciência da necessidade do regresso e da palavra dor.

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