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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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30
Jul20

Poema Infinito (519): A loucura das árvores

João Madureira

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As árvores enlouqueceram. Inclinaram-se todas na mesma direção. Entrelaçaram-se umas nas outras. As casas flutuam na bruma. As formas das montanhas são extremamente lentas. A avó era capaz de responder a perguntas sem abrir a boca. Mais do que a presunção, temo o sorriso da indiferença. Sempre tentei agarrar num pirilampo, mas nunca encontrei nenhum. Sempre fugi das maldições. Ser estúpido, é a maior de entre elas. Na família todos temos os olhos rápidos e observadores. São agora mais nítidas as manchas de luz na superfície do rio. Uma nuvem branca estende-se ao longo da margem direita. Até a floresta mais sólida do cimo do monte ardeu. O silêncio amontoou-se. As memórias vão descendo os degraus, lentamente. As cores começam a arder. E as dores a arrefecer. Há pessoas que conseguem cheirar a neve e o perigo. Depois do nevão, passa a ser difícil distinguir a silhueta das árvores. A abundância do Pentecostes cai sobre nós de uma maneira inesperada. Apesar da paz, estou com os visores noturnos nos olhos. Eu não acredito na paz e muito menos na guerra. Os profetas acham que os tiros não passam de parábolas. Confiam que os tiros da realidade passam sempre demasiado alto. O cometa Halley continua na teimosia da sua velocidade cega e da sua luz ardente. Algumas memórias derretem-se com o calor excessivo do presente. O calor humano tem destes efeitos secundários. São primitivas as raízes de todos os sonhos. A névoa noturna submerge a cúpula da igreja. O ar frio sussurra sobre este mar de nuvens. As certezas foram-se para nunca mais. Por vezes ainda chega a alegria aos nossos rostos. Há determinadas horas do dia em que alguém liga um chuveiro de luz dentro da casa velha. As auroras cristalinas contam-se às dezenas. O calor é agora mais paciente e terno. Esta nova ternura é mais lenta. Novas árvores se levantaram da terra. Tudo adormece nesta casa velha, menos eu. Lembro-me que a mãe gostava de nos despertar logo pela manhã. Além da família, também acordava os móveis, sobretudo os da cozinha, e os armários. E os espelhos. Gostava especialmente de acordar os espelhos, enquanto se penteava ou punha algum batom nos lábios. Há demasiado cinzento nestas paredes. As noites são tão antigas que doem. A memória é primitiva. Nunca fomos capazes do delírio. Os caminhos estão exaustos. Por isso tremem as noites. Os setembros são agora mais sombrios. Mais cheios de silêncio. A tarde alcança o poente. São estrangeiros grande parte dos vindimadores. Muitos ficaram doentes porque apanharam o vírus da saudade. Os lagares enchem-se de vinho mosto. A melancolia tomou conta destas terras. As casas estão cheias de dores. Muitas foram destruídas pelo tempo. O sangue deste povo foi sempre triste. Daqui ouviam-se os comboios. A fome partia e chegava todos os dias. Começaram então a ficar estranhas as palavras. E começaram a multiplicar-se as ausências. As mãos do pai cheiravam cada vez mais a tabaco. Eram frenéticas e magras. Bebia e fumava demasiado. O inverno fazia parar tudo. Eu avançava pelo meio das insónias. A mãe lia comovedoras histórias da Galileia. A mãe era muito crente. Demasiado. De pouco lhe valeu. Eu dava longos passeios porque não me escolhiam para jogar futebol. E ouvia os comboios a seguirem para sul. Aqui era o final da linha. Ou o começo.

 

 

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