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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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27
Ago20

Poema Infinito (523): O eco do tempo

João Madureira

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Nós somos a principal aventura de Deus. A alvorada começa a surgir. Sente-se a chuva contra a corrente do rio. A chuva intensifica-se. Depois para. Sinto a luz a curvar-se e a gravidade a fazer abrandar o tempo. De novo a chuva começa a tamborilar regularmente contra a calçada. Sente-se a decomposição pelo meio dos farrapos do dia. Nuvens de borboletas voam em volta do tomilho. Um raio de luz cortou obliquamente o forno da aldeia. Já ninguém aqui coze pão. Ou se aquece. “Houston, daqui a base da tranquilidade, a águia aterrou.” Sente-se a força G. Quando se sai da atmosfera terrestre o normal é sermos acometidos por uma náusea avassaladora. As gotas de chuva, ao embaterem no vidro, seguem a trajetória das lágrimas da mãe quando o seu e o meu pai morreram. Lembro-me que a sua cara ficou como a de um ator de kabuki a meio da maquilhagem. Muita da melhor arte consiste em encobrir a própria arte. O assombro faz sempre parte da inocência. Sinto a ressonância elétrica do Big Bang. Por cima de nós, as nuvens aproximam-se das cores góticas. Por vezes são as coisas sem importância que nos fazem ver a importância delas. Escrever é o início de um enigma eterno. O nascimento foi o primeiro apontamento da História. Seguiram-se os martírios, os milagres, os casamentos  místicos, as cenas de tortura, as crucificações, as mortes, as ressurreições, as procissões. E as batalhas entre exércitos rivais. E os santos adolescentes crivados de setas. Depois Ícaro caiu de cabeça no mar porque as suas asas artificiais de cera derreteram. Os homens nunca chegarão a pássaros. Agora vejo campos arados, árvores, trajetos de identificação, tardes de ócio. Depois oiço o eco do tempo. Nas traseiras, a avó limpa o quintal com a sua vassoura de giesta. Junto aos salgueiros, as vacas pastam timidamente. Os ventos áridos costumam provocar incêndios frios. O desequilíbrio das evidências pode transformar-se em tragédia. Os pobres costumam desenvolver o temor da terra árida, da chuva e das geadas. E também o silêncio das casas. Quem odeia os livros costuma desfolhá-los como se fossem malmequeres. Há quem confunda a alegria cósmica com insensatez. Há momentos em que as coisas bonitas são tão insuportáveis como as feias. Há poetas que desfazem a poesia à força de tanto escreverem versos que não sabem a nada. Gostam de  colecionar poemas e flores campesinas. A sua poesia é uma língua morta. É insuportável a sua tendência para transformar os abismos em superfícies banais. Mas a poesia só o é verdadeiramente quando possui dentro de si a polifonia que estilhaça todos os limites da linguagem. A vida parece uma sucessão de intervalos. E depois há a poesia. E ainda a poesia sobre a poesia. Nós somos a média aritmética do caos. Voltamo-nos sempre para os mesmos rostos, como as personagens dos romances seculares. Gostamos de propagar a incompreensão. De pulverizar a gramática. De corroer a ironia. Epistemologia é semântica fraca. Toda a angústia nos deixa perplexos. Eu só admito ser criminoso se a liberdade for crime. Os loucos de agora já não possuem grandeza. D. Quixote morreu de forma definitiva. Somos todos Sancho Pança, sem burro, sem gordura e sem ilha. Triunfou Nero ao volante do seu Maserati elétrico. Dulcineia é um transexual. Qual de nós acordará com a cabeça do Rocinante deitada a seu lado?

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