Poema Infinito (526): A outra metade do universo
Lembro-me que pedia à mãe para parar a escuridão da noite. E a mãe ajudava-me a vencê-la. Depois a escuridão veio, mais tarde, e engoliu o avô, a avó, o pai e a mãe e os tios e alguns primos. E continua a descer sobre nós. Tudo agora são sentimentos esmagados pela mó compressora da saudade. A vida desassossega os deuses. A avó escrevia lindos textos mudos com o seu silêncio. O pai também. Os do pai, apesar de mais mudos, eram ainda mais profundos do que os da avó. Talvez por causa da cor dos olhos. Os da avó eram azuis, quase transparentes. E os do pai eram castanhos, como a terra. O pai caminhava sempre com os olhos cravados no chão. Depois o mundo começou a ficar um bocadinho meu. Depois também a realidade começou a ficar grosseira. Ainda bem que as pistolas e as bombas não saíram de dentro da minha imaginação. Sinto que o eixo da Terra se está a deslocar. Utilizo o teclado do computador como os avós manejavam as suas alfaias agrícolas. Lá fora, as folhas dos plátanos começam a cobrir os passeios. As pombas voam por instantes e depois pousam. As nuvens parecem de plástico reciclável. A sensação desagradável é agora mais tranquilizadora. O olhar começou a vacilar. Estamos sempre envolvidos em pequenas catástrofes. A arte de voar, como provou Leonardo da Vinci, inclui o estudo da dinâmica dos fluidos, a lei do movimento e a arte dos espetáculos de teatro. É também necessário estudar a ciência dos ventos e a leveza das almas. As pombas batem as asas mais depressa quando as baixam do que quando as levantam. Os corvos fazem isso ao contrário. Já as pegas levantam e baixam as asas à mesma velocidade. Isso, muito provavelmente, depende do centro de gravidade de cada ave. Tudo é originado recorrendo às perspetivas explodidas. A ingratidão do esquecimento torna tudo mais confuso. A impertinência é curiosa e torna-nos curiosos. Um dia desenhei numa folha branca a mãe a cozer no pote batatas, couves, toucinho, um chouriço de cabaça e o tempo. Estava alegre, a mãe. Cozer o tempo fazia parte da sua arte culinária. E amassar o pão abençoado. Tempos antes, Gabriel tinha descido à Terra e os peregrinos tinham começado a interrogar os profetas. Não era época propícia à poesia. Depois da expansão, o nosso universo começou a contrair-se. Basho continuava a escrever os seus haikus e a dilatar o caminho para o norte. Os mortos começaram a engolir a luz. Moisés liderava-os exibindo a sua face em chamas. Estava sempre a ir e a voltar da montanha. Entretanto chegou Jesus e os apóstolos transportando visões de glória e redenção e entraram em Jerusalém. Depois, os apóstolos afastaram-se em direções opostas. Transportavam o sonho de abraçar a terra e de transformar multidões de homens em santos. O inferno desceu antes do Espírito Santo. E os peregrinos começaram a lançar fisgadas a Satã. Ele apenas se ria com os seus olhos feitos de buracos negros. Eneias regressou das sombras, iluminando os oráculos. Metade do povo de Deus entrou no mar. A outra metade ficou a ver. O Senhor caminhou então enxuto sobre as águas. Ouviu-se o vento do mar sobre os canaviais e o canto intenso das aves migratórias. Veio de longe o frio. Os anjos transformaram-se em espelhos. Os abismos criaram asas e voaram para o céu. Apesar de brilharem no escuro, muitos livros continuam repletos de vazio.