Poema Infinito (527): Aspectos
Tudo aparenta ter aspeto de milagre sedimentado. De descanso. Estou a ver se consigo prorrogar o amanhecer. Os teus olhos parece que perderam a noite. Ainda oiço o som cavo dos tamancos a bater no empedrado. E os murmúrios do passado. Lembro-me quando comecei a contar histórias a mim próprio. Comecei então a domesticar alguns dos fantasmas que me visitavam e que brincavam comigo. As coisas domésticas são as mais voláteis. Falta-lhes a lógica, a exatidão e a imaginação. Começamos a andar para trás sem avisar. Os lobos andam agora de máscara anti-covid. O silêncio mata tudo. O vizinho do avô passa os dias a olhar para os pássaros dentro da gaiola. As aves são o seu desassossego, por causa dos gatos. Desistiu de criar roseiras porque se enchiam de bicho. Os anjos estão sempre entre o bem e o mal. Os mais novos metem pena porque perderam as asas. Alguns adoeceram. A verdade é que ninguém sabe como os anjos adoecem e muito menos como se curam. As paredes velhas apertam a casa. As telhas e os vidros estão partidos. O vento assobia nas escadas. A velha casa tem falta de ar. Lembro-me do quintal, de nos deitarmos na relva ao sol e da minha irmã mais nova estender no chão os seus belos cabelos. Os gatos fugiam sempre de mim. Os degraus estão agora mais pequenos e escorregadios. Fazem parte das memórias. Fazem parte dos enganos. Os sentimentos não se podem vender ou comprar. Talvez a floresta que avisto daqui seja a de Orcínia, o lar dos unicórnios. Talvez eu seja um predecessor de blade runner, antes dos unicórnios serem absorvidos pelas fábulas. A luz guia-me ao teu rosto. Mesmo à noite. Os frutos são agora mais lúcidos, transbordam de sabedoria. A claridade transformou-se em enigma. Os anos começaram a sossegar mais um pouco. A paciência tem outro timbre. A velhice encontra sempre o tempo que lhe foge. A chuva amanheceu nas terras altas, cheia de insónias. O pensamento recuperou a nostalgia das terras meridionais. Faz-se tarde. Voznessenski recuperou da bebedeira comunista. Agora faz coléricos stripteases. A solidão está extenuada. Já abandonou os amigos. A solidão é outra forma de sentimento. Percorro o esquecimento em sobressalto. Os rios. E o acaso. Guardo os desígnios na memória do computador. Também o amor lá cabe. Apesar de tudo ser agora muito mais estranho: o parto das mulheres, a tristeza dos animais, o início das chuvas, o tempo das vindimas, o silêncio agressivo das invernias, o coração a bater, os presságios e as ruínas do tempo. Os peregrinos seguem os caminhos como se fossem cegos. Os campos são mais breves e o povo mais amargo. Sem antepassados não existe história. As florestas adensam-se. Os animais já não visitam as clareiras. É depois do extermínio que os exércitos regressam a casa. O vento seco fustiga as urzes. A solidão inclina as vinhas. Antes da destruição, o vale era sereno. A terra prometida está cheia de sangue. O pai entardeceu cedo demais. Agora passeia pelo meio dos sonhos, entre pomares longínquos, iluminado pelo crepúsculo. O princípio de tudo é violento. A eternidade é salgada como o mar. Agora meditamos sobre a meditação dos homens antigos. As festas dos deuses costumam ser implacáveis. Os seus olhares dirigem-se sempre para longe. A velha casa morre-nos a meio do olhar. O vale está em absoluto sossego.