Poema Infinito (533): A curva do outeiro
Os espaços da noite produziram um vácuo no amanhecer. O sino da igreja bateu o meio-dia, fazendo dispersar um bando de aves que levantaram voo do campanário e debandaram contra o azul do céu. Preparo-me para apreciar a feroz indiferença da tempestade que se avizinha. A paisagem ficou aberta. A lembrança do pai vai-se apagando nos meus olhos. A avó distinguia as estações do ano pela intensidade de luz que entrava pela janela virada a poente, ao fim da tarde. Ela prolongava as conversas pensando prolongar com elas também a vida. Ela gostava das palavras, mas temia gastá-las sem proveito. A mãe teimava em aceitar as opiniões dos outros. Já eu discutia as certezas de todos. E o pai, quando deixou de respirar o ar monocórdico da juventude, passou a encher os pulmões com o fumo dos cigarros, apesar da mãe lhe afagar a cara e o abraçar com carinho. Não é por intensificar o passado e o futuro, que o presente deixa de existir. As memórias são sempre resíduos de sensações. As árvores parecem levantar-se da terra. As janelas abertas deixam respirar a casa. Sente-se a frescura da serra depois da chuva. Tu dizes: anda, vamos, antes que seja tarde. Custa-me deixar os meus deuses domésticos e os movimentos breves da natureza e as gotas noturnas de orvalho e a imagem perene dos choupos que bebem junto ao rio. O dia desaparecerá junto à curva do outeiro, quando nós formos embora. Tudo se transformará em enigma. E depois em decifração. As aves gritam junto à igreja. Fazem lembrar almas antigas, repletas de incenso. Nascem flores estranhas pelos campos. Por vezes, corre e espalha-se um fogo feroz pelas montanhas, alucinando o mundo, queimando corpos e almas como se fosse o tal inferno de Dante. O horror torna-se demasiado nítido. Por isso, quase ninguém acredita nele. Durante muitos dias pendurou-se nas serranias calcinadas um nevoeiro tão denso que todos pensaram ser um castigo divino. Aquele mês deixou de existir, ficaram apenas os dias ímpares, as roseiras bravas, os jardins em volta, as estrelas errantes e as coisas tristes. Ao longe, as portas das casas começaram a morrer. E também os alpendres. Até o sol se perdeu no mar. Os caminhos deixaram de ter fim. O vento dispersou a bruma. Os longos poentes escrevem-se em setembro, quando os olhares andam de norte para sul, reunindo a claridade. É tempo de começar a selecionar os deuses domésticos. São eles que nos escolhem as melhores gotas noturnas, que invocam o orvalho, que descobrem as árvores, que coagulam a chuva verde e que distinguem as várias horas da tarde. Costumam carregar às costas muita das horas do dia sem perderem a paciência. São eles que ligam e desligam os sonhos e rezam por nós as orações decoradas. São também os deuses domésticos que dão voz aos anjos mudos. São ainda eles os quem medem os ângulos das tragédias. Cheguei a habitar num castelo rodeado de vento e de pássaros e de crepúsculos e de donzelas vestidas de girassóis e de pronomes. A rainha tinha um sorriso oblíquo e dizia recear o paraíso. Começaram então a varejar as estrelas nas terras ao redor. Depois parti num barco feito de ondas. Navegava devagar, à procura de destino. Quando chegava às ilhas encantadas, era sempre noite. A claridade passou a ser uma incerteza que ainda hoje se mantém. O dia apareceu na maré cheia.