Poema Infinito (536): A distância do tempo
Durante a noite caiu uma geada fraca nas montanhas que os cascos dos animais fazem estalar ao trepar por cima de folhas, galhos e plantas geladas. A saudade traz-nos os mortos que rodeiam a lareira e se sentam ao nosso lume. Por isso fiz um fogo que nos aquece a todos, como me ensinou o pai. A velha mesa, onde ceávamos, ficou sozinha no meio da cozinha. Quatro vivos e tantos mortos à nossa volta. No meio do silêncio, ouve-se o crepitar das pinhas e das vides da Ribeira. Sentimos o silêncio húmido a isolar-nos do mundo. Ainda me lembro do velho lagar e do cheiro a mosto. E das primeiras chuvas de primavera. E das noites que pareciam não ter fim, desabando em cima de nós como se fossem fantasmas. A voz da avó era sempre a primeira a ser escutada nesta casa. As chamas da fogueira lambiam as negras pedras da parede, iluminando os potes de ferro e a madeira lustrosa do escano. A avó costumava contar-me coisas enquanto fazia o caldo. Lá fora cheira a folhas apodrecidas. As sombras estão mais frias à espera das outras que estão a gelar. O pio das aves anuncia mais frio. A chuva cai. Chegamo-nos mais para a frente. Apaziguamos a verdade. A fogueira aquece-nos a todos, onde ardem toros de carvalho duro como o ferro que dão calor permanente e difundem uma luz mortiça, rachas de pinheiro que se consomem de forma flamejante enquanto produzem pequenos estalidos. Também as vides, que resultaram da poda das vinhas, se vão transformando em cinza. O meu filho mais novo atira pinhas ao lume. Gosta sempre de estar a brincar. Dizem-me que herdei do avô a paixão pelas árvores e pela água. A mãe e a avó agora parecem irmãs, trespassadas pela mesma ternura. Sinto as suas mãos sobre as minhas. Sinto a pequena alegria e a pequena dor de estar vivo. A distância é maior do que o tempo. O espaço começa a contrair-se. E a saudade a expandir-se. Cada um constrói o seu próprio universo. Isto dura tão pouco. Por isso parece inútil. A nossa casa fica junto ao rio. Em frente estão os montes solitários. Por vezes ouvem-se as árvores. A sua força benigna toca-nos e penetra-nos. Foram o avô e alguns pedreiros que racharam a alvenaria para edificarem a casa. Também calcetaram a rua íngreme e lajearam a eira. Eram mestres em cortar as fragas e afeiçoá-las a pico e a cinzel. Gostavam de cantar enquanto trabalhavam. Nessa altura batiam-se os manguais nas eiras e lavrava-se a terra com o arado puxado pelas juntas de vacas. A solidão agora é tremenda. Apenas a serra e as estrelas continuam resignadas no seu lugar. Pelo chão andam os restos do inverno. Passávamos as suas noites infinitas, feitas de chuva e névoa, à beira do lume. O avô costumava contar histórias. Depois todos ficávamos em silêncio. A minha alma criou-se nesse mutismo. A avó aquecia-nos por dentro com o seu olhar. As suas mãos transmitiam o caráter sagrado ao amassar do pão. A sua bondade não nascia do esforço. Era inata. Passava a vida a pensar nos seus. O tronco continua a arder no lume. De fora vem o odor da floresta e da água dos córregos que faz aumentar o silêncio húmido. A velha mesa da consoada ficou quase despovoada. Parece que tudo isso apenas fez parte de um sonho. Os fantasmas começam a despedir-se de nós. Conservo em mim o caráter eterno das árvores. A avó. O avô. A mãe. E o pai. Essas árvores que arderam antes de tempo.