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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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31
Dez20

Poema Infinito (541): A arte da respiração

João Madureira

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Aprendi tarde a dominar a arte da respiração bradicárdica. Os olhares fixos provocam sempre silêncio. As rotinas ajudam a combater a crescente sensação de instabilidade. Habituei-me a acarinhar as silvas por nelas ver despontar as amoras silvestres. E a acordar cedo para guardar em mim a luz emergente do dia e a imagem dos pinheiros altos e esguios. Aprendi a amar o cheiro frio do inverno e as manhãs claras de primavera. Nesses dias, a mãe enchia-se de fazer croché, de tricotar, de aconchegar a Julinha e de lhe pentear os cabelos loiros. Nalguns momentos, os seus olhos ficavam suspensos entre as duas agulhas. Por vezes murmurava algo distorcido e confuso. Na cozinha cheirava a pão, a carne de porco grelhada e a fumo. Quando me enchia de fumo, costumava sair para o jardim e sentar-me num lenho a acariciar uma pequena junta de bois de madeira que o meu padrinho tinha esculpido, incluído o jugo. Era frequente a minha irmã Rosa vir atrás de mim embalando a Julinha nos braços, enquanto a mãe preparava a vianda para as cevas. O pai devia andar na patrulha. Guardei, como um tesouro, a memória do sorriso das minhas irmãs e a luz moribunda desses finais de tarde de outono. A mãe e o pai já desapareceram como se fossem palavras pálidas. Na minha mente, as suas faces vão-se diluindo em névoa. Toda aquela beleza já murchou. O sol está agora baixo, o céu ficou nublado e o dia arrefeceu. Daqui vejo o rio e uma névoa estranha que sai da água. Uma névoa fina. A chuva ecoa sobre a face negra do dia. Agora sou um estrangeiro na minha própria terra. Eu já saí dela. Mas ela ainda não saiu de dentro mim. O vento empurra suavemente o arvoredo para oeste. Era de lá que o pai costumava aparecer para nos visitar. Caminhava silenciosamente sobre o trilho, passando pelos estábulos em direção a casa. Depois, de manhãzinha, atravessava os campos verdejantes, os pomares, e metia algumas maçãs nos bolsos. Lembro-me de os campos estarem cobertos de trevos. E também do rio, da névoa e da erva alta acenando. E o sol a brilhar pela manhã. Lembro-me de olhar para dentro dos olhos do pai e desaparecer neles. Nesse tempo, as sementes eram lançadas por esses outeiros fora, as plantas sachadas e tratadas com diligência e as colheitas feitas com entusiasmo e devidamente guardadas. Ao avô já as sombras da fogueira lhe dançavam no rosto. E as nuvens da respiração anunciavam o inverno. Daí não passou. Também a avó já não conseguia sorrir e perder-se nas nossas brincadeiras de reminiscência. Num desses dias, olhei para a avó e reparei que o seu rosto tinha amolecido. O passado profundo é um mito da memória. O tempo ficou grande e redondo. Ficou menos pesado que o ar. A lassidão da ternura é hoje uma memória. Mastigamos o ar como se fosse pão ázimo. Lembro-me da impressão de felicidade quando saltava de pedra em pedra, descendo os baixios do rio em direção à aldeia, contornando a curva do ribeiro, para mais a baixo sair das águas poucos profundas e depois subir as margens. O sol lançava uma luz amarela e suave sobre a superfície da água. Algumas águias tinham por ali ninho. Gostava de as ver voar. As aves grandes nunca são sacudidas pelo vento. Parecem sempre majestosas no céu. As memórias são agora rasgos de luz, impressões e sensações semelhantes a sonhos.

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