Poema Infinito (557): A luz e a sombra
Observar como um surdo-mudo comunica é uma boa maneira de estudar a relação entre os gestos e o pensamento humano. A obsessão é uma das componentes do génio humano. A demanda é o que define a sua arte. A luz é que revela a qualidade da cor. Onde há mais luz há mais verdade. Devemos sempre olhar para ela de frente. A luz nítida provoca rudeza. Mas pouca luz impede a nossa observação. Foram as qualidades dinâmicas da variabilidade e seletividade, no seu contraste com a luz estática, que fizeram com que Leonardo da Vinci criasse uma nova era na pintura. Nos seus quadros, as plantas, as paisagens e as pessoas passaram a ser mais perfeitas. Mais elas próprias. E, por isso, ligeiramente diferentes do que a Natureza criara. A genialidade está nos pormenores. Por alguma razão, os anjos de Leonardo são parecidos com mulheres, sugerindo uma ambiguidade sexual próxima do divino. O posicionamento do olhar do anjo Gabriel, no seu quadro A Virgem dos Rochedos, do Louvre, é perturbadoramente sedutor. A sua androginia é fascinante. Tudo ali nos absorve. Nos retratos de Leonardo é frequente a pequena luz cair sobre a sombra dos próprios braços. O olhar das suas mulheres seguem-nos pela sala, à medida que nos deslocamos e olhamos para elas. O amor pela encenação é um ornamento da corte. As profecias e as parábolas foram criadas para serem representadas. Só aí ganham sentido. A verdadeira criatividade, como a definiu Leonardo da Vinci, requer a capacidade de combinar observação com imaginação. Os diferentes tipos de sombra são produzidos por diferentes tipos de luz. Por isso, o Mestre passou mais tempo a estudar as sombras e a escrever sobre elas do que sobre qualquer outro tópico artístico. As formas dos corpos só podem ser entendidas ao pormenor por meio das sombras. Os contornos são secundários. A gradação das sombras é infinita. Leonardo escreveu mais de quinze mil palavras sobre o tema. E até calculou os efeitos da luz incidindo sob vários ângulos em objetos previamente delineados. Existe sempre um espaço onde a luz cai e depois é refletida de volta à sua origem. Depois encontra-se com a sua sombra original e mistura-se com ela, modificando-a. Esta é uma interpretação divina. Na verdade, a natureza não tem linhas precisas. Entre a luz e a escuridão existe uma variação infinita. Os pontos e as linhas são uma criação matemática. São uma ideia imaginária. Leonardo representava as formas e os volumes recorrendo à luz e à sombra. As linhas que limitam as superfícies são de uma espessura invisível. Todos os limites se confundem, tanto na natureza como na arte. O divino mestre tanto ofuscava os limites entre a arte e a ciência, como ofuscava os limites entre a realidade e a fantasia e entre a experiência e o mistério dos objetos que nos rodeiam. Foram muitos os que, durante a pintura da Última Ceia, visitaram e se sentaram em silêncio para poderem ver Leonardo a trabalhar. A criação da arte era, por vezes, um evento público. Era frequente empoleirar-se num andaime e, de pincel na mão, trabalhar do nascer ao pôr do sol, esquecendo-se de comer ou beber. Noutros dias não pintava nada, limitava-se a ficar durante uma hora ou duas, diante da sua obra em solidão, examinando e criticando as figuras por si criadas. A germinação da criatividade alimenta-se da intuição.