Poema Infinito (564): A calma da foz
Para ali estão as sardinheiras plantadas em panelos inúteis, com ar de despojos dos dias em abandono, evidenciando uma estrutura geométrica feita de grandes folhas verdes. Os tesouros estão agora a monte. O oiro em pó pega-se aos dedos. Os caixilhos derretem-se. O pátio condensa o calor agonizante. E nós para ali a sofrer. Os velhos abrem a boca apavorados pela tristeza. Já não me lembro de quem semeou, ceifou ou mondou as courelas. Os montes aprenderam a gostar da solidão. Neles apenas Lot fala com os anjos. Bebo os comprimidos do esquecimento com a ajuda da água do São Caetano. Depois ergo o braço esquerdo e a seguir o direito para tentar rezar. Mas não consigo. Apenas vejo o rosto do pai e a sua tristeza branda. A casa perdeu os seus cheiros. A sala é muito mais pequena, quase não cabendo dentro da sua instabilidade. A água do rio reflete o céu. E o seu profundíssimo infinito. O novo tempo traz outras palavras. E borboletas. E sombras. E o jogo do berlinde. E ninhos de pássaros abandonados. Noutros tempos chegava o Natal e a entrada da casa iluminava-se e ninguém pensava na morte. Íamos à missa e à adega e ao forno buscar o pão acabado de cozer. O quarto cheirava a maçãs. A infância era sol e terra húmida. As sombras alastravam-se e as tardes adensavam-se. E eu lia o jornal à procura de significados. A mãe tratava dos coelhos, das cevas e das galinhas. A vermelha chocava os ovos dentro da velha cesta. No carnaval escondia-me dentro de casa a ler histórias de príncipes e princesas que se repetiam como se fossem cromos de futebol. O amor era um sítio escondido. Comecei a descobrir a vida secreta das imagens. E a olhar e a sentir o subtil prazer do espírito. E a admirar o sentido limitado dos sólidos e a dimensão diáfana da paixão. A luz faz a cor. A virgindade habita sempre uma sala vazia. Sinto-me agora mais longe do voo das aves. Já não sonho de olhos abertos. Quando agora escrevo, começo a sentir o pensamento a desfalecer. As flores continuam a arder dentro dos meus olhos. O fogo regressa ao seu início. Encontro Kandinsky atrás da porta a brincar com a orelha de Van Gogh. As árvores começaram a perder a euforia da primavera. A luz desabrocha. Escolho ver os cometas que estão presos nos olhos da mãe. Antes de se despenharem. As brasas espalham-se pela lareira. A avó costumava dizer que as trevas estão antes do batismo. Eu subo a memória degrau a degrau. A luz transfere-se para a água e depois para o ar. O pensamento faz parte da biografia da eternidade. Da sua quietude e das suas moléculas. Os braços da escuridão atravessam a vida em sofreguidão. O caos desfaz os objetos complexos. As árvores amadurecem de tanto esperar. O nome de batismo é uma espécie de estrela do norte. Lembro-me de me fixar no seu umbigo, antes da minha namorada se despir. De baixar as calças para me consentir. Não a queria ferir. Nomeei-a suavemente. Os sexos ardiam, mas as pontas dos dedos pareciam pedaços de gelo que apalpavam botões de flor como se pudessem ferir. As glicínias começavam a florir. Sentia-se o seu perfume em declive. As coisas bravas são oblíquas. Já o amor é paralelo. O sofrimento também pode ser um ofício. A ausência não dá tréguas. A tua fé afeta-me. Vejo passar o tempo como um rio calmo. E eu desfaço-me por dentro. A calma da foz está sempre antes da fúria trágica dos oceanos.