Poema Infinito (575): A Origem
Os pássaros começaram a aumentar no céu claro. Esqueço as fábulas, os tumultos e a frescura das maçãs. Algo está para chegar. A memória de menino queima-se com a luz do tempo. Há quem semeie pedras para colher muros e casas. O silêncio ficou branco. O espelho do rio reflete o dia. As árvores fiam o vento. Eva montou em Adão e fez-se bruxa. Foi ela que gerou o tempo e o pecado. Adão fez-se de parvo. E parvo continuou. Eva corou de indignação. Adão pensou que era apenas timidez, ou vergonha. A partir daí, o brilho apagou-se para os homens. Foi Eva que apanhou com a cólera dos filhos. Depois escondeu dentro do seu próprio corpo o pecado e a redenção. Quando encontrava razões para castigar os filhos ficava histérica. E os filhos cabisbaixos. Os primeiros subornos foram conseguidos com sorrisos e eram meramente sentimentais. A serenidade de Adão começou a arreliar Deus. Eva, porém, não baixou os olhos quando Deus a fixou com o seu olhar. A paixão provoca fascínio. Maria, a mãe de Jesus, foi a primeira a disso se aperceber sem perceber que se apercebia. A verdade é que a provocação da serpente teve origem numa falsidade devidamente premeditada pelo Senhor. A penugem azul da madrugada encontrou Adão bêbado e Eva de novo com cio. Eva então foi à procura de outro homem mas só havia aquele no mundo. No seu mundo. Foi assim que nasceu a monogamia. Depois da primeira tentação, Eva cedeu à segunda: a de se livrar do medo das palavras. O Verbo transformou-se em adjetivo e começou a falar inglês. Eva, então, começou a contrair os lábios no momento da penetração. E a verbalizar o ato de contrição. E teve enjoos. E começou a ter desassossegos. E teve várias gravidezes seguidas. Ardia-lhe a alma. E o corpo. E até o sexo. Utilizou então óleos santos e orações pagãs. Tornou-se bruxa em algumas noites de determinadas sextas-feiras. E santa aos domingos. Adão começou a escrever poemas onde enaltecia a luz esplendorosa do amanhecer e do crepúsculo, tentando imobilizar a sua tristeza. Pensava que o seu Deus o enganava. Depois Adão fez-se ao mar e Deus começou a espalhar palavras com a ajuda do vento. E o mundo começou a oscilar, a oscilar, mas não chegou a cair. A terra, reconfortada pelo sol, reconfortava o Senhor. Adão, depois de regressar ao que antigamente tinha sido o seu paraíso, encontrou Eva outra vez grávida do seu pecado original e pôs-se a cultivar os campos, a tratar dos vinhedos, da cabana, do moinho do gado e dos marcos que testemunhavam a sua ocupação. As ordens de Deus, do velho Deus do Antigo Testamento, eram dadas em monossílabos, como gritos de guerra. E Adão obedecia, que remédio, pois o velho Deus do Antigo Testamento tinha um feitio exacerbado. Tolerava os humanos mas não os amava. Por vezes arrependia-se desta sua criação. Num momento de exaltação, deu-lhes tudo em abundância: moedas, pragas, guerras e pestes. E êxodos. E travessias do deserto. E dilúvios. E a Eva concedeu-lhe o milagre das maternidades sucessivas. E ofereceu-lhes ainda a ambição do poder e o prazer da carne e de criar riqueza. E a baixar sempre a voz quando falassem com ele. E mostrou-lhes a terceira visão: a morte, o sangue e o sofrimento. E escondeu-lhes o futuro. E eles riram e depois assustaram-se. Depois contou-lhes o seu desejo de engravidar uma mulher de forma divina e de gerar um filho que havia de morrer pregado numa cruz para redimir o mundo, etc.