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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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23
Set21

Poema Infinito (579): A água do ar

João Madureira

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Este silêncio parece aguardar por uma resposta. Resposta que eu não tenho. Os livros da cabeceira caíram ao chão. Caíram dentro do silêncio. No deserto de Atacama, um dos lugares mais desertos do planeta, os agricultores aprenderam a recolher água do ar, para isso suspendem grandes redes para apanhar bancos de nuvens vindas da costa do Pacífico. O nevoeiro é capturado de manhã cedo, antes de o sol desfazer as nuvens. Essas gotas de humidade escorrem pelos fios de plástico e juntam-se no fundo da rede, onde são canalizadas para um tubo que conduz a uma cisterna. Os agricultores chamam a essas redes apanhadores de nevoeiro. Desviamo-nos do centro da terra. As paisagens estão cada vez mais inclinadas.  Alguém trouxe os cavalos que transportam os poemas, as profecias, os mandamentos e as inspirações. As mulheres escutam. Têm a cabeça cheia de gritos. São os seus gritos anteriores ao amor, quando as suas vozes começavam a florir e os seus olhos tinham um brilho precioso e as suas mãos tocavam ao de leve o centeio imaturo. Sentiam a distância do tempo mas não a compreendiam. Os seus lábios estavam desenhados em curvas sôfregas prontos para beijarem coisas extraordinárias. Procuravam o sol, os frutos e os milagres. Milagres, nem vê-los. O desejo também nos pode consumir. É no âmago da água, na sua magnanimidade, que descansam as almas, criaturas sem história, sem desejo e sem tempo. Cá fora, as crianças esperam o rebentar das amoras e a maviosa loucura das uvas. Os seios das mulheres grávidas enchem-se então de leite e dá-lhes uma incontrolável vontade de cantar. A gravidade dos seus seios enche-as de instinto. Depois amassam o pão, com o corpo a arder e os olhos palpitantes. Projeta-se na parede uma sucessão de imagens vertiginosas de alegria e impudor. Algumas mulheres novas cheiram a resina e conseguem acordar a erva. Outras choram quando veem as estrelas despenharem-se no céu. Os corpos iluminam-se por causa das luzes longas provocando sombras ásperas e um desejo que vem de longe. No meio do mar dormem as ilhas dos mitos onde se vela a beleza, onde principia o mundo e onde um dia há de acabar. No continente cresce a carne, os espíritos cegam e ficam abstratos. Começa o tempo. As mulheres devolvem a luz com que foram criadas. E vertem águas. E parem crianças concebidas em silêncio embrulhadas em auréolas. O desejo foi puro. O poeta escreve uma nova teoria de instintos, cheia de inocência. Aves azuis pousam sobre os trevos. Cada instante consome a sua própria eternidade. Lembro-me de beijar os olhos da esperança e depois morreu o pai. Aquele incêndio nunca mais ninguém o conseguiu apagar. Nem Deus embebido no seu minuto sobrenatural. Vivo dentro desta casa morta, rodeado de centauros e de crepúsculos agonizantes. Muitas das palavras mais amadas morrem-me dentro da boca, mesmo antes de serem articuladas. O desejo traz o perfume da noite. Sentimos a grande paz das coisas exteriores, as minúsculas raízes de sol, o silêncio e a posse. E o poder insustentável do tempo. Arde no monte um inesperado campo de urzes. Os arbustos parecem bichos iluminados. Colho o espanto com as minhas mãos dolorosas. Repouso o olhar na delicada mesa dos símbolos. A avó beijava sempre a pequena cruz antes e depois de rezar o terço. Depois tocava-me na testa e mandava-me ir deitar com os anjos.

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