Poema Infinito (580): A ágora das almas discretas
Os santos do altar têm ar de estarem exaustos. Alguns estão de costas voltadas por já não conseguirem acompanhar as voltas infinitas da linguagem de Deus. Há pessoas que cometem erros em relação a si próprias. Não há pombas em Jerusalém. A minha oração preferida começa assim: não permitais que o ramo da oliveira tombe da mão do guerreiro da paz. O problema foi quando a pomba da paz começou a sua inclinação para cima, em vez de voar lateralmente. O seu bico ficou demasiado grande para poder segurar o ramo de oliveira sem os devotos do costume aprovarem a heresia. O mais santo dos santos, ou dos aldrabões, diz que consegue ouvir o som dos séculos quando encosta o ouvido nos montes do Fragão. O arado pode ser lento e profundo, mas a terra é paciente. Por vezes, o chão desaparece debaixo de nós e o céu torna-se enorme. Ninguém consegue voar sobre o deserto. Algumas pombas, por vezes, recusam-se a bater as asas. O seu sangue desorienta-se. Perdem o instinto. Enquanto os justos são guardados por anjos, os perversos precipitar-se-ão no vale. É difícil desmantelar o medo. Para alguma coisa deve servir a poesia. Eleva-te Little Nemo, eleva-te. Deixa as andas do outro lado do muro e vem dançar. O seu rosto parece sempre a meio de uma questão pendente. A chuva começa a cair com determinação. Todos os locais são santos. Por vezes, as estradas principais dão em becos sem saída por causa dos muros que dividem cidades e países. Ruas longas, memórias curtas. Os caminhantes encontram consolo nas caminhadas. Ajudam a moldar-lhes o pensamento. A dosear o esforço. A ter paciência. Depois já podem começar a viajar em várias direções diferentes. É bom sentir a arquitetura destas velhas casas, os seus tetos lisos, a sua cor neutra. Uma velha oliveira assinala o meio da praça. A luz começa a espalhar-se em redor da enorme fraga, numa grande auréola. Ainda me lembro de atravessar os campos e encontrar as mulheres a carregar molhos de erva às costas e de as ver regressar à aldeia passando pelo antigo poço da Ribeira. Elas, os burros e as crianças. Agora as sombras são ainda mais íngremes do que as escadarias de pedra. As noites são demasiado profundas. Já não há luzes nas janelas. Bandos de pássaros voam sobre o cemitério. Já estão lá todos os meus antepassados. Até os mais recentes. A desintegração é agora o exército da morte. Deslizando sobre os muros, o vento murmura e ecoa baixinho. A nossa terra transformou-se numa ágora de almas discretas. A candeia apagou-se num segundo. Estou agora sentado no silêncio. Lá fora, a luz diminui. Eu nasci aqui. Primeiro devemos vencer a dor e só depois tentar compreendê-la. Lá em baixo está o vale. Mais ao longe move-se o ar em redor da igreja. Fecho a porta e as janelas para que não entrem as borboletas. O tempo não espera por nós. Tento acalmar o vulcão da saudade e da tristeza. Tento. E tento mais uma vez. A extensão dos sentimentos é cada vez mais vagarosa. O pensamento repousa sobre as palavras. Nomeio os prodígios e a claridade. Junto ao rio ainda se escutam alguns ecos do dilúvio. Noé fugiu do paraíso a tempo. Juntou-se ao sussurro dos romeiros que atravessam a velha ponte romana a caminho de Santiago de Compostela. Lázaro ri-se de tristeza. Junto a si, os discípulos lavam os pés e os pecados. Tanta teologia para nada.