Poema Infinito (614): Arestas
A planície voltou a tingir-se das cores quentes do ocaso. Há horas e dias hipnóticos e amargos. As terras ficam em silêncio, à espera. Os caminhos estão sempre abertos para quem os quer percorrer. O vento cobre de poeira o rasto dos que partiram. As ruas desertas e silenciosas respiram calma e tristeza. O céu alumiou-se com um incêndio longínquo. A angústia é grande. A ansiedade é grande. O peso do tempo é enorme. Esta alegria não é alegre. Como Betsabé, somos vítimas vingadoras. Quando a mãe compunha a echarpe parece que lhe nasciam asas. E sorria. O pai também sorria por a ver sorrir. Só depois acendia o cigarro sem filtro como se fosse um ator de cinema francês e talvez dissesse jet’aimemoinonplus. Eu acreditava no pai, a beleza não é erótica, é teológica. Faz sofrer toda a gente. É a principal viabilidade do pecado. Do sofrimento. Depois botaram as horas todas em cima de mim. E o tempo começou a correr lento como água sobre azeite. Foi também o meu pai que me disse para desconfiar das pessoas que tinham o sorriso tão fino quanto as hóstias que o padre oferecia na igreja e que se limitavam a ler um único livro vezes sem parar. Depois o pai ficou com a pele parecida com a terra seca depois do verão. As almas costumavam curvar-se no trabalho do campo. Todos aprendíamos com o galo e as galinhas do quintal e quando o pai segurava as éguas para os garanhões ou as vacas para o boi do povo. Afasto esses pensamentos. Nem tudo é pecado. Olho para o passado e parece que está vazio. Olho para o vazio. Fixo-me nele. Os mestres andavam pelos povoados a mostrar as maravilhas do mundo que eram monstros disformes ou anões marrecos. Nós fazíamos caretas. Depois o mestre dava um pontapé num anão e ele dava uma cambalhota, fazendo os guizos e as moedas costuradas na jaqueta tilintarem alegremente. Mas as sereias barbudas ainda eram uma desilusão mais profunda. E o comedor de fogo era o vivo Diabo. E o barbeiro-cirurgião arrancava dentes por entre os gorgolejos horrorizados dos doentes. Havia na aldeia dois ou três atrasados que se babavam muito porque, dizia o povo, tinham mamado nas tetas de uma cadela quando eram pequenos, pois as suas progenitoras ou tinham morrido depois do parto ou tinham ficado secas de leite. Agora sei a razão porque os olhos da mãe por vezes ficavam imperscrutáveis, cheios de luzes estranhas e reflexos que queriam significar qualquer coisa. Todos nos movemos para diante e nunca voltamos para trás. O filme tanto anda para a frente como para trás. Pestanejo. Fecho os olhos. Estendo as mãos. Nunca ficamos completamente curados da tendência para as catástrofes. Ping, Ping, Ping, nem sequer me dou conta de que estou a chorar. Ping, Ping, Ping. Onde andam os pássaros brancos da verdade? Espalhados pelo chão da casa estão os fragmentos de luz. Quilómetros e quilómetros de silêncio à nossa volta. Passou um instante. Passou outro instante. Ao terceiro adormeci. Com o tempo, vamos afiando as nossas arestas, por vezes cortamo-nos nelas. E sangramos. Ao contrário das perguntas, muitas das respostas não precisam de ser dadas através de palavras. O tempo está sempre a esgotar-se. Mais do que a própria perícia, o que me seduz é a sua ideia. As trevas estão dentro de cubos de luz. Esferas dentro de buracos negros. Os olhos da mãe e os olhos do pai a desaparecerem.