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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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25
Ago22

Poema Infinito (627): Aurora

João Madureira

ORIGINAL.jpeg 

 

A aurora nasceu nublada, tingida de um cinzento imperfeito. As portadas das janelas continuam fechadas. Durante a tarde, o sol entra pelas aberturas da madeira, prolongando-se no soalho em grandes riscas delgadas. O clarão que desce pelo buraco da chaminé confere tons de veludo à fuligem acumulada, azulando os restos das cinzas. A mãe, quando rapariga jovem, era aqui que cosia as meias, cantando, enquanto a aragem passava debaixo da porta, espalhando a poeira do soalho. Por vezes calava-se para tentar ouvir o cacarejo de alguma galinha que acabasse de pôr. Lá fora, no outeiro, os rapazes faziam zunir os seus piões. Tudo era monótono, lânguido, atravessado por modulações que terminavam quase num murmúrio. A alegria era ingénua. À noite, o céu cobria-se de estrelas, corria o vento sobre as ruas e sobre as árvores. E os cães ladravam ao longe. Por vezes ouvem-se ainda ruídos contra as paredes. O pai ia e vinha do trabalho, pelos atalhos que serpenteavam os campos cheios de centeio verde. Era homem delgado e de poucas falas. Se fosse dado à música podia ter sido um rabequista dos antigos, animando festas, casamentos e batizados. O forno serve agora de depósito de lenha, despensa e armazém. E na adega estão os tonéis vazios, o arado e outros utensílios de lavoura fora de uso, no meio de muitas outras coisas poeirentas de utilidade indeterminada. Os silvedos tomaram conta das sebes. As palavras gritadas vão e vêm agitadas pelo vento, nesta enorme câmara de eco. Recompõe-te, diz-me alguém do lado de lá. Recompõe-te, diz-me alguém do lado de cá. Tudo a mexer-se entre o grande e o ínfimo. Entre o interior e o exterior. Entre o sim e o não. Agora acumulo detalhes e rejeito os contadores de histórias. Os fluxos da mediocridade são arrasadores. Incapacitantes. Imparáveis. Cai uma chuva miudinha. Caos e ordem. Ordem e caos. O castelo, ao nascer do sol, fica envolto em neblina até meio, dando a impressão de que está suspenso no ar. Em seu redor, brilham as maçãs penduradas nas velhas macieiras, como se fossem feitas de ouro polido. O vento toca os tojos e as giestas e as urzes, nas encostas dos montes. O abandono dos campos e das casas dá-nos outro conhecimento do vazio. Amaram-se os dias puros, as vozes felizes, o rumor das palavras e dos sentimentos, a vocação lenta da existência. Agora cai sobre a aldeia o coro absurdo do silêncio. O silêncio é a sua própria matéria. O sentido nasce do próprio sentido. As pessoas rodeiam os muros e os muros rodeiam as pessoas. As pessoas são frágeis e os muros também. Até o muro de Berlim caiu e era de betão armado… em bom e honesto. E socialista real. E caiu e foi retalhado como se fosse de cartão. E os seus inúmeros pedaços foram vendidos por bom dinheiro. Os bons símbolos da liberdade conquistada a Leste são muito bem cotados no ocidente. Moldamos Praga com um olhar, ali para o lado do Senhor da Ajuda. As cinzas de Auschwitz e os átomos andam por aí espalhadas ao deus-dará. Diz que deu, diz que dá, diz que Deus dará… A beleza das fotografias de Praga pode ser insuportável. Os mortos estão por todo o lado. Desordenados, desfeitos em pó. Sonho que os meus um dia poderão ser pó de estrelas, confundidos com o Universo. O mundo, umas vezes, parece um gueto. Outras é-o de facto.

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