Poema Infinito (630): Febre
Sinto o vidrado do gelo a estalar debaixo das minhas botas. Isso provoca-me um entusiasmo denso. Sinto a languidez da febre. O vento adorna os ramos que também gemem de frio. A sensualidade é uma coisa cutânea. O frio também pode ser sensual, quando não é outra coisa. A mãe toca-me com as costas da mão a verificar se tenho febre. O musgo e as ervas daninhas começaram já há algum tempo a corroer as pedras. O resto dos muros estão gastos e arredondados pela erosão. Regresso a casa com as maçãs do rosto vermelhas. Isso também faz parte da poesia, a felicidade que se reparte por instantes admiráveis. O frio, as boas memórias, a saudade, os sorrisos. Os patos deslizam sobre a água, ao pôr do sol. O passado parece engolir-nos. Estou no limite da submersão. Bancos de neblina flutuam sobre a folhagem. Segue-me atento o olhar tranquilo destas vacas imperturbáveis. Estou imerso numa imensa extensão cinzenta. Há pormenores que nos libertam e existem outros que nos matam. O problema é que não somos nós quem os escolhemos. No meio do silêncio surge um rumor feito de suspiros. Penso se a beleza serve para alguma coisa. Se me dedicasse ao tiro, estou certo de que escolheria o de precisão. A verdade é que nem ornitólogo consigo ser e é muito mais simples. Oiço os pássaros, mas não os vejo. Assim não os vou poder caçar. Também se pode matar a beleza. Por vingança. Acordei e estou rodeado de borboletas. Todas a preto e branco. Os meus primeiros poemas pareciam teatrinhos, caixas de chocolates, pequenos novelos de lã dobada com os braços, com os meus pequenos braços. E a mãe a dizer que devia movimentar as mãos para ser menos custoso. E a mãe a tentar ouvir as abelhas. E a mãe a tentar ouvir o pai. E a mãe a tentar ouvir a Julinha, que mal sabia mamar. E o leite da mãe a pingar das mamas e a endurecer o sutiã. E o pai a fumar. E a mãe a tentar ouvir o pai a fumar. Eu seguro com a mão esquerda aquilo que não consigo aguentar com a mão direita. Dizem que Deus é ambidestro. O frio é. O medo antecipa a força e a cobardia. As fogueiras de Natal tornam glorioso este nevoeiro. Esta terra milenar. Triliões de triliões de triliões de átomos ajudam ao calor e ao frio. Os animais dormem como se fizessem parte da fantasia. As vacas bafejam as palhas, mas os meninos Jesus já não nascem por estas terras. Por aqui, agora, batizam-se as pedras. O infinito está sempre em queda livre, mas nós não saímos do lugar. Sempre dentro dele, sempre a tentar fazer algo que nos satisfaça. Sempre inquietos. Sempre o José Mário Branco a abençoar-nos com a sua inquietação. Este silêncio está morto. É como um mortalha a cobrir a aldeia, os caminhos, as terras, o castelo. Blimunda dá-nos sempre que pensar. Abençoada seja. Santa Bárbara queimou os cabelos com os relâmpagos. Os trovões não os ouve Deus porque desligou o seu aparelho auditivo. Ao sair do túnel, encontrámos o fim do mundo. E o gigante Adamastor estava tão velho que ninguém o reconheceu. Os átomos reagrupam-se e nascem células por todo o lado. Todo o poder da luz cai em lâminas sobre nós. A geada da noite foi imensa. Sinto o vidrado do gelo a estalar debaixo da pele. Bebemos chá quente misturado com um pouco de tempo. Estamos sós. Então o sexo apanha-nos em flagrante e faz-nos penetrar na sua agilidade. O amor é tolerante. Quando pode.