Poema Infinito (632): A desmancha dos símbolos
Os símbolos começaram a desmanchar-se: Deus, os Santos. E as histórias de guerra que o avô contava. Apenas o gosto do tomate, da cebola e do pimento continuam estáveis. A telefonia é agora um objeto de estimação, bonito por fora e mudo por dentro. Lembro-me da mãe passar os dedos pelo rebordo da chávena do café enquanto cantava. Os seus dedos ainda eram macios. Já os da avó tinham gretas e estavam escurecidos pela terra. Pareciam os cortes de faca na toalha de oleado. Costumava limpar da superfície da mesa as migalhas do pão, do sal e do açúcar. A avó tinha sempre as costas direitas e os ombros levantados, mesmo quando rezava. Ou chorava. E quando tremia de raiva, fazia-o em segredo para que ninguém reparasse. A capacidade para a avó ter medo foi coisa que ficou no passado. Desde que ele ficou nu, escondia-o no seu íntimo. Como se não existisse. Costumava afastar o medo para um canto com os seus braços cansados. Voltava-lhe depois as costas e adormecia no seu colchão de folhelho. A avó, com a morte do avô, ganhou lucidez mas perdeu a esperança. Sucederam-se as noites em branco, os dias cansados e o corpo tenso. O silêncio espalha-se obscuramente pelas redondezas. O tempo ficou mais espesso. Os grilos estridulam e os cães da vizinhança ladram. Cheira a outono. Os troncos das árvores brilham no meio da penumbra. As cancelas e os portões estão fechados. Os campos descansam numa paz tranquila. Daqui observo a Ursa Maior sentado na mesma pedra do pátio em que a avó se sentava a fazer o mesmo. O vento movimenta-se pelo meio das macieiras. Os passos da avó pisaram a terra deste pátio e era a partir daqui que ela ia à igreja e aos estábulos, acomodar as crias. Apenas se arreliava quando as vacas marravam contra as traves. O vento nas macieiras parece o sussurro da avó. Lá fora, a humidade adensa-se sobre o musgo dos muros e dos telhados. O tempo desliza até adormecer. A manhã nasceu branca como a roupa que a mãe e a avó lavavam nas margens do rio, batendo-a depois nas pedras. É difícil habituar-me à casa com o estábulo vazio. A terra dos nossos antepassados é sagrada, mas agora para que serve? Por aqui, o tempo range como a dobradiça das portas. Nero, o cão da casa, morreu num dia em que começou a ladrar com muita antecedência. Depois correu para a estrada, por ter confundido alguém com o avô. Mas os pés desse homem eram fracos, não fortes e pesados como os do avô. E tinha o olhar encovado. E os lábios finos. E as mãos sujas. Provavelmente era o medo. Mas não o medo da avó. O medo da avó era outro. Não vale a pena vasculhar inutilidades. Sinto na boca o estranho sabor da saudade. Quando ultrapassamos o futuro, voltamos ao passado. Lembro-me dos cheiros e da maneira de andar de cada um. Junto da casa dos outros avós, existia uma framboeseira cujos frutos apenas eram comidos pelas lagartas. Eu não gostava de ir lá. Lembro-me de esmagar as framboesas com os pés depois da mãe me obrigar a ir pedir a bênção a essa outra avó e a dar-lhe um pacote de bolachas, que fazia parte da minha vergonha. Das minhas lágrimas. Vinha de lá a correr para comer o caldo de ossos de assuã que a avó me preparava no pote. No seu pote. E beber limonada adoçada com açúcar de beterraba açucareira. O fogo ardia, racha a racha e a sopa desaparecia na malga. Os olhos da avó, desta avó, brilhavam tanto ou mais do que os meus.