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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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13
Out22

Poema Infinito (634): Entorpecimento

João Madureira

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Apenas sinto o entorpecimento. Não a dor. Estou cansado. O próprio chão debaixo dos meus pés parece cansado, tal como o pai antes de morrer. Estou à espera. À espera de alguém. Estamos sempre à espera de alguém. A macieira ficou branca e quase transparente. Continua a dar maçãs douradas. Ouvem-se vozes pesadas da melancolia e da saudade. A saudade mata-nos a todos. Os bons fins, não justificam os maus meios. Bendito sejas, Koestler. A escrita acaba por ser quase sempre uma reescrita. Não são só os países que estão em guerra, as pessoas também. E isso dói. E complica as coisas, sobretudo as ideias. Feitas. É difícil ver o que está lá atrás. A pornografia dos Papas está guardada num arquivo separado na biblioteca apostólica do Vaticano. Nem os representantes de Deus na Terra estão a salvo. Do pecado. A culpa moral é um problema irresolúvel. A arte tem sempre uma conotação sexual. Morte em Veneza é uma metáfora gay. Thomas Mann não conseguiu fugir da sua Montanha Mágica. A literatura também pode ser um bordel. Thomas Mann era um freak. E Susan Sontag. E Clarice Lispector. E António Variações. Apesar de tudo, não vejo nada. E ainda oiço menos. John Cage. Um mojito em Sesimbra. Mar. Sol. Marisco. E subidas enormes. Água fria. Pessoas medíocres aos gritos de felicidade fingida cheias de finos e sorvetes. Ninguém espera Godot em Sarajevo. Ninguém se salva através da arte. A arte é um refúgio. É uma espécie de salvação falhada. Beckett no meio das bombas é arte. E o cavalo de Turim também. Anjinhos com traseiros volumosos tocando trombetas voam para dentro de uma tempestade. Alguém acaba de se confessar e espera pela penitência. Fixo-me nas mãos postas. O calor prejudica a visão do quadro. Por vezes oiço vozes estranhas dentro de mim. De pouco serve um violino a quem não o sabe tocar. São as pessoas que possuem coisas as que decidem a vida daquelas que não as possuem. Nasci aqui. No mesmo ano em que Philip Roth chegou a Inglaterra, foi ver a Pedra Roseta, os Mármores de Elgin e, depois de um jantar, foi parar ao Soho onde encontrou os passeios pejados de prostitutas. Deu uma volta por lá e depois escolheu uma. Sempre o artista atrás das suas inspirações. Os meus pais, e restante família, ensinaram-me os valores da honra e da vergonha. Isso confere profundidade e solidez a todos os tipos de relacionamento humano. O heroísmo é sempre uma simplificação da verdade. Daí a sua insolência moral. Se o meu primeiro olhar intelectual foi para Nabokov, o meu primeiro pensamento foi para as borboletas de Lolita. Foi através dele que me encontrei com Tolstoi. E depois conheci Valentina. E a seguir o exílio na Crimeia. Tal como a Nabokov, a mim escolhiam-me sempre para guarda-redes. Há lá desilusão maior. Mas para sermos aceites no grupo aceitamos tudo. Entretanto dediquei-me à leitura da antiga poesia árabe, os “Poemas Suspensos”, com origem e significado obscuros. Estudava-os no divã, para preservar a tradição e a sua memória coletiva. Dizem que a sua escrita foi preservada em pedra. Os poemas falavam de fontes que as estrelas faziam jorrar e que as alimentavam. E também da água das nuvens e das trovoadas. E das vozes das nuvens noturnas e das que cobrem o céu da manhã. E da tarde. Sempre umas a responder às outras. A esses bons povos a inveja não lhes tocava. E ninguém cometia a indignidade de desertar para o inimigo.

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