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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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20
Out22

Poema Infinito (635): No limiar

João Madureira

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Todas as ruas da aldeia estão mal iluminadas e desertas. Para além da fileira de árvores espectrais, corre o rio, prateado pelo luar. Sento-me no banco solitário do adro da igreja. O silêncio que se escuta é denso. Quase perfeito. É parecido com o silêncio de Deus. Não penso em nada. Penso apenas que não penso em nada. O vento varreu as ruas. Limpou o céu de nuvens, expondo, no seu esplendor, a beleza inútil das estrelas. A sua beleza é má, toda ela só fogo e luz. Ouve-se o gemido do vento entre os ramos despidos, o murmúrio das folhas secas. Alguns olhares emitem um clarão equívoco. Daqui vejo a evolução do amanhecer no céu. Tudo belo. Tudo tão inútil. O chão parece oscilar. Os gritos das aves caem sobre os campos, provocando inquietação. Silêncio. Sou capaz de sentir a água a subir pelas raízes do amieiro. E depois o silêncio. Tenho a certeza de que este é o sítio certo, mas parece o sítio errado. Estas casas contam trivialidades dolorosas. Ensinaram-me a procurar luz, o que me ia quase cegando. Encontrei pouca luz alegre, a maioria ia entristecendo lentamente. Habituei-me ao lusco-fusco. Para aqui estou solitário no meio de melharucos, carriças e pardais. O espetáculo é de uma ternura inútil. O tempo gasta tudo, até as palavras. Menos as dos papagaios, pois não possuem significado. O tempo desdobra-se por outros caminhos. O tempo multiplica as cidades e destrói os campos. Devagarinho, como quem caminha para o infinito. Não devemos repetir os gestos para não lhes duplicarmos a intensidade. Por vezes apetece-nos reter alguém apenas com o olhar. E abrimos a boca de dor e não nos sai qualquer tipo de som. E ouvimos vozes íntimas. E a pessoa que amamos vai embora. E depois aproximamo-nos de nada. O tempo avança, inevitavelmente. Fico de pé no meio da estrada da aldeia, o sol a erguer-se, à espera. Ninguém chega de lado nenhum. Volto para casa. Sento-me na beira da cama e oiço uma canção que não consigo distinguir. O som começa a perder-se. E a sua memória também. Adormeço como um sonâmbulo. Depois de acordar vou para a varanda tomar o pequeno-almoço. As primeiras aves migratórias voam ao ritmo da voz sonhada da mãe. Oiço os cães e os pardais, o murmúrio do tempo e a humidade a tomar conta da terra. Daqui também oiço o barulho da sala da ordenha mecânica do outro lado da aldeia. Passeio de forma desalinhada, por vezes com passos breves que se vão tornando mais longos ao ritmo da inquietação. O vento sopra do lado das bétulas despidas. Nos seus ramos estão empoleirados pequenos pássaros. Dentro de casa, o silêncio é sufocante. Não deixarei ir embora as memórias sem antes as cansar. A escuridão ficou brilhante. Depois apagou-se, novamente. Sinto-me no limiar. No limiar da linguagem. A causalidade e o tempo a isso obrigam. Um nevoeiro entrou pela buraco da fechadura e pelas frinchas da porta e espalhou-se pela casa. Uma andorinha fez o seu ninho no beiral do estábulo. Sento-me no meio do silêncio a ouvir a casa. Um bando de pássaros pousa na árvore e rasga o silêncio com os seus chilreios. Algumas recordações possuem uma dignidade especial. O sofrimento lava as memórias e a alegria incendeia-as. Ouvem-se cânticos de salmos alternados. Estes espíritos costumam ser expansivos. Somos todos crianças básicas atiradas para a boca de Deus.

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