Poema Infinito (636): Ruínas
Ruínas. Está tudo em ruínas. O fogo desbastou a colina. A tarde cai, dourada. Velha. Casas abandonadas. Caixilhos das janelas desfeitos. Vidraças partidas. Plantas trepadeiras a devorarem as paredes. A aldeia parece uma civilização medieval extinta. Não estou sozinho, viajo com os livros. Tu caminhas ao meu lado, por esta rua. Ainda não nos cruzámos com ninguém. O disco amarelo, e depois vermelho, do sol desce no horizonte por entre a bruma violeta. O rio parece um rego de água. Caminhamos para sul, em paralelo com o rio. Descemos em linha reta. O azul do céu é tão suave que até dói. Terrenos baldios. Ervas daninhas, altas. Troncos delgados de árvores. Uma magnólia prodigiosa ocupa o espaço lateral do jardim. Levantou todo o chão, derrubando paredes vizinhas. O tempo dá saltos bruscos. Depois paralisa. Os profetas também são vulneráveis ao desânimo, à vaidade e à ambição. Alguém cuida das suas ovelhas e apanha figos. Desenvolvem-se formas inesperadas de amargura. Coisas luminosas envoltas em crueldade. A saudade já não dói tanto, mas ficou esquisita. Muito mais esquisita do que aquilo que já era. Um enterro sobe a ladeira. Quase todos choram. E os que não choram, suam. E as saudades a caírem-me dos bolsos. As saudades, as memórias, o lenço e as moedas. E as vírgulas. E os cravos de inverno a matarem saudades. Deus e o Diabo na terra da chuva. Chuva nas ruínas. Chuva nas terras. Chuva nos olhos e nos caminhos e nos telhados das casas. Chuva nos rostos. Chuva nas mãos. Chuva nas campas. Chuva na tristeza. Chuva nas redundâncias. Chuva no leito do rio. Chuva na respiração das ovelhas e na aflição dos pássaros. As ervas oscilam e pingam gotas das suas pontas. A amoreira fendida por um raio ainda ali está a meter medo. Por aqui só há velhos, almas inquietas e galos a cantar a qualquer hora do dia. Depois silêncio. E ruínas. E uma foice pendurada na parede. Tudo parece molhado, mudo, perturbador. Ruínas. Chuva nas ruínas. Chuva de ruínas. Chuva de desespero. Chuva nos preceitos. A avó vestia-nos nos domingos reflexos como se fôssemos a principal devoção de Deus. As mulheres com vestimentas florais e os homens com a forma perfeita da cupidez. E lá íamos, juntos ou separados, aguentar com os sermões, com a concordância, com os olhares perfeitos e com as almas em leque. Há sempre uma réstia de calma antes da tempestade. Os olhos enfurecidos da tristeza já não se dirigem a nada. Apesar das palavras tranquilizadoras, parecemos animais domésticos brutalizados. A lâmina da foice pendurada na parede resplandece. Alguém andou a afiá-la. E nós a empurrar palavras para as meter dentro do baú. As palavras ainda estão húmidas. E tristes. Estão velhas e gastas. Algumas perderam o sentido. Já não sabem em que livro entrar. Ou de que oração sair. Muitas delas gotejaram do sânscrito, do latim, do árabe, do grego, do aramaico e do persa. Daqui vejo Cannaã e o Larouco. Tudo precisa de palavras, sejam elas de onde forem, menos a sensualidade. Aí desfazem-se na boca como o açúcar. Ou perfuram como a luz. As que possuem uma alegria quase infantil escapam-se-nos das mãos e tentam fugir para o terraço para poderem brincar. Vamos atrás delas respirar a brisa da tarde. A decisão está tomada: chegou a hora do mergulho. Eis o impulso. Finalmente.