Poema Infinito (650): Cintilações
Uma coisa é amar, outra é acreditar no amor. E nós a acreditar no tempo. A conversar com ele como se fosse mortal. Depois criamos janelas, quadros, molduras e espelhos. Sedução e apoteose. Sempre com a nossa consciência subversiva a imitar melodramas. O medo come as lágrimas amargas. Há almas que não conseguem estar separadas e que não suportam estar juntas. É como criar porcos, galinhas e coelhos com muito amor e ter de os matar para não morrer à fome. Lembro-me da cintilação dos olhos da mãe. Das suas pequenas explosões de fúria. Das réplicas da sua voz que vinham do lado mais claro do rio. Tudo se extingue e desaparece. Entretanto ficamos molhados de medo. Farrapos de luz atravessam a sala. A mãe diz que passava o tempo a recordar o odor dos lírios, os pedaços de felicidade, o cheiro a fumo. A recordar os sentimentos mais puros como doenças, os sorrisos e as lágrimas, a melancolia da desilusão. A ouvir à noite vozes sombrias de animais selvagens e a continuar a seguir a estrada perdida no meio da escuridão. No meio do silêncio ouve-se o barulho da corrente do rio. A existência do paraíso é uma ideia que arde dentro de mim. É uma ideia literal. Literária. Que causa dor e espanto. Mas as libélulas gigantes acabam por morrer de qualquer forma antes de chegar a noite. Será que no paraíso existe noite? Por aqui, o entardecer caiu como se fosse um sudário, sobre as casas, sobre os animais, sobre os campos, como se algo de estranho estivesse para acontecer. Escutam-se cânticos subtis e apaziguadores. Cantos que são como epílogos. E opiniões que são como caminhos abstratos. Opiniões e religiões são uma e a mesma coisa. Deus tem mau feitio. Todos os círculos, depois de feitos, não têm princípio nem fim. Se Deus existisse tinha que ser óbvio. E não medo. E não um espaço em branco. E não silêncio. Deus gere o suspense com o silêncio. O seu principal segredo está na sua não existência. Eu aprendi o silêncio com as árvores. E a contemplação. E não me arrependi. Apesar de toda a aprendizagem, ainda não encontro jazz na chuva, apesar de saber que ele existe e se mexe por entre as gotas. Um nevoeiro denso cai sobre os caminhos que levam diretamente ao céu. Estou rodeado da ausência de Deus. Tem de haver filtros para peneiras neste pó celeste. E os anjos a agitarem as asas sem saberem para onde voar. Deus não é, antes fosse, nem sequer um absurdo. Tudo nele é luz e escuridão. Desilusão. Lembro-me que a avó lavava sempre as mãos antes de pegar no terço, antes de folhear o missal, antes de cozinhar, antes de me fazer festas e antes de pôr as mãos em riste para rezar. Nunca soube qual era a sua escala de dor. E isso dói-me. E também a escala de dor da minha mãe. E isso ainda me dói mais. Ambas ficaram viúvas antes de podermos todos amadurecer os sentimentos. Começamos a escrever para virmos à tona da água, porque estamos sempre a pensar que nos vamos afogar. Os vestígios dos sentimentos de inferioridade acompanham-nos durante toda a vida. Lançam-nos a boia e, apesar de não gostarmos dela, temos de agarrá-la para não sucumbir. Mas uma coisa é salvar-nos e outra, bem diferente, é gostarmos que nos salvem. Agradecemos, mas a ferida permanece. Mais do que ferida, é uma cicatriz. O amor também tem a sua forma de inversão. Tive que começar a escrever para poder respirar. A procurar as palavras que me custavam a trincar, mastigar e engolir. Da religião ficou-me o sentido da culpa. A dor do segredo. As imagens belas para os outros e para mim as sombras. Mas a luz pode ter quatro nomes: Luzia, Vasco, Axel, Rute. Abençoados sejam.