Poema Infinito (651): Pássaros nervosos
Não tinha berlindes mas uma caixa de botões coloridos para jogar. As palavras e as memórias procuram refúgios para se esconderem. O menino precoce com as suas manias. A tentar beijar o sorriso ainda mais precoce das meninas. E as meninas a serem meninas a saltar à corda a sua precocidade. Apetecia deitar-me à chuva. Enaltece-me a deliciosa sensação das gotas de água a escorregarem sobre a pele. São como pequenas insignificâncias que se vão expandindo. E nós com os beijos aos tropeções, como jovens namorados. E ainda com o sexo aflito e com as veias a baterem forte como o coração. O que é isto, mãe? Línguas de perguntador. E eu a aprender a ler sozinho pelas orações dos santinhos. E a tentar perceber as palavras do avô quando me falava dos peitos de rola que eram rijos como os das raparigas. E a mãe a pedir ao avô que se calasse e a avó a rir-se como se soubesse traduzir o sorriso do avô. Comecei a colecionar memórias, santinhos e cromos do futebol. E histórias da carochinha. Ainda gosto das narrações que se dispersam em todas as direções. Das histórias ilimitadas, como a superfície dos berlindes. Que não têm princípio nem fim. Aquele tempo tinha também outra dimensão. As suas memórias são agora como partículas de pó suspensas num feixe de luz. Tudo misturado numa infusão amarga misturada com as cores dos pássaros nervosos a comer as cerejas mais maduras da cerdeira da Clérga. Tudo num filme musical, mas sem som. Depois chegaram as facas de cortar ideias e as tesouras de podar alegrias. E tudo começou a ganhar outra forma. A dimensão nervosa e adulta de pensar. O tempo dos conceitos e das suas fronteiras. E começámos a duvidar das convicções. E das certezas. Todas as palavras são úteis. E inúteis. Depende. E chegaram também os silêncios. E os juízos de valor. Que também podem ser a mesma coisa. Depois chegou o amor e começou a ficar tudo iluminado. Quando o desejo é fixo, até os olhos têm ereções. O amor pode ser ensurdecedor. Uma espécie de felicidade infeliz. Uma alegria que provoca dor. Sinto o cheiro do amor. Tudo tem um cheiro. Surpreendo-me na tua boca. Na preparação do chá. Na velha pronúncia da avó, apoiada nos dentes e na leveza dos lábios. Quando as contava, as histórias pareciam estremecer. Por vezes eu adormecia com o rosto encostado à suave respiração do seu peito. A felicidade era um lugar onde se apanhava calor. A sexualidade ainda estava dentro da sua crisálida, ainda apenas havia risos, gritos, cantigas. E velas de cera na igreja. E água benta fria na pia. No verão andávamos com a pressa das sandálias que trazíamos nos pés. No inverno, era a lentidão das botas que nos pesava. As crenças eram escuras, como o pecado. A compaixão levava-nos ao silêncio. Por vezes, nem o lume nos aquecia. Nem o pão nos matava a fome. Ficávamos de olhos vazios. Tudo adquiria um tom pardacento a que era difícil fazer recuperar o brilho. No inverno, o senhor abade falava-nos do inferno e tudo ficava ainda mais frio. À noite, a avó acendia a candeia mas era difícil expulsar os pesadelos. Apenas a fadiga nos empurrava para o sono. Eu rezava para que o mundo mantivesse o equilíbrio e não caísse e se afundasse no mar profundo. Eu pensava na mãe e ela não vinha. Eu pensava no pai e ele não vinha. Ainda hoje oiço essa infância que julgava esquecida. Ainda hoje oiço os pássaros sufocados no ninho que construíam no telhado.