Poema Infinito (652): Indefesos
Nós sentimo-nos ainda mais indefesos quando não há nada de concreto que possamos defender. Ou combater. As brincadeiras não se moldam, o que se molda são os brinquedos. A minha gaivota não voa porque tem corpo de madeira, asas de zinco e bico de prego. Não voa, mas parece. Nela estão misturadas a alegria e o desalento. Voar livremente é perigoso. É como pensar. Livremente. E ali está ela ao lado do Anúbis, que já foi partido ao meio e colado com supercola 3, com a Santa Muerte, com o Santo Filho Muerto às carrachulas, e com Thot inclinado sobre o lado direito por defeito de fabrico. E com a Matrioska, e com o ioió grego. E com uma Santa Luzia pintada à mão, com os seus bonitos luzeiros a olhar para os seus olhos bonitos que estão depositados no prato, como se de duas pérolas vivas se tratasse. E Jakob, o Mentiroso, a interromper o seu trabalho de judeu preso num campo de extermínio para desfrutar do fascínio de um som nunca ouvido. E os barítonos fortes a cantar fraco. E nós a deixar de desejar o desejo. A esconder a dignidade debaixo do tapete como se fosse lixo. Deus não tem noção de quando uma conversa chega ao fim. Deus parece que fala em surdina e os humanos fazem que ouvem com meio ouvido o seu discurso incompreensível. Ele do lado de lá e nós do lado de cá. Nós daqui e vós daí sois tantos como nós, mataremos o cordeiro e as vísceras são para vós. Senhor. Deus deixou criar os guetos e os gulagues porque sabia que não ia ser metido lá. Ninguém disfarça as desigualdades. Todos a fingir. Igualdade. Infortúnio. Anjos que são sentinelas. Que têm duas mãos direitas. Quando alguém faz as suas orações, uma estação de eletricidade ganha mais potência, mas a verdade é que uma outra começa a falhar. E Deus a dar-lhe. Deus não recupera o tempo perdido. Deus, o verdadeiro Deus, elimina-o. Parece que andamos todos os dias a descobrir o medo. O medo dele. O nosso medo. O medo não acontece por si só. Tem as suas leis próprias e insondáveis. Podes ter uma balança, até daquelas muito sensíveis, mas nunca conseguirás pesar a esperança. Nem a tua, nem a dos outros. Acho que nem há fórmula para a produzir. Ou efeito para a reproduzir. E a lenda diz que nós regressaremos à aldeia com a mão a segurar o queixo e o nariz a tocar o vidro que emoldura a paisagem verde agreste, cheia de giestas, tojos e pinheiros bravos. Semeada de rochas. E a saudade a entrar arrastada nos nossos olhos. E nós a desistir daquilo que não fomos capazes de conseguir. Mas a tentar pensar que na água tudo pesa menos, até os sentimentos. Casar-se em apneia é uma bela ideia. E os sentimentos em filigrana. Este cheiro a abandono e a compaixão tem muito a ver com má consciência. A minha barba cresce como se fosse o restolho das terras dos campos em volta. E eu à volta do adro da igreja, como se estivesse no adro de uma prisão, a trautear as canções com os lábios quase imóveis que a mãe me cantava quando eu estava doente na cama a fixar os monstros na parede. O silêncio à noite ainda é mais espesso. E o frio da noite lá vai executando os pássaros. E nem um pio se ouve. Faz tudo parte da normalidade, dizem. Dizem os que estão habituados. De manhã pegam neles, pegam-lhes nas penas da causa, e lançam-nos para longe. A quietude e a normalidade engole os sentimentos. Na primavera vêm outros. Não há que ter pena, é a lei da vida. O que passou já não tem realidade. Quem me dera que a realidade fosse uma mentira. Mãe. Pai. Quem me dera. Choramingo como uma criança.