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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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27
Abr23

Poema Infinito (662): O buraco do tempo

João Madureira

 

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Na ausência de quem gostamos, os dias ficam demasiado longos. Alguém anda a regar o jardim com murmúrios de água. Os pequenos gestos sucedem-se como se fizessem parte do sacrifício. O jardim está cheio de moitas floridas. Olho para as folhas das árvores que baloiçam no céu. E penso neste universo, no meio de todos os outros, como se fosse um objeto. A realidade inteira é muito relativa. Tudo aquilo que se move perde sentido. Um homem assobia como um pássaro desorientado. Andam a colocar na igreja os anjos de asas abertas e longos cabelos dourados que foram para retocar e pintar de novo. Dizem que uma alma que se eleva, eleva o mundo. Por aqui não há almas desse género. Apenas a da Maria Fonseca era capaz de temperar de beleza a fealdade do mundo em que vivia. Bastava amassar o pão e misturar-lhe a levedura azeda do fermento para engrandecer tudo aquilo. No meio do silêncio, cada um pensa no que pensa. A lógica da memória não existe ou é desconcertante. A tristeza, esta minha tristeza, assemelha-se a uma luta de pássaros. A chuva começou a entrar na sala por um buraco fininho. Depois, sucederam-se os relâmpagos. A esperança morre agora mais depressa. Deus é como um cuco, sempre a pôr os ovos nos ninhos alheios. O buraco do tempo olha para mim com muita atenção. Faço que me rio. Eu estou perplexo. Ele está indiferente, como sempre. A Maria Fonseca anda a mondar ervas daninhas e urtigas. É a sua maneira de combater a raiva e o desespero. Não diz nada, mas o seu espírito está cheio de urgência. Agarra nas minhas mãos, ajusta as suas e aperta-as. Ela chora sobre o espaço vazio que agora existe. Eu engulo as lágrimas. Um homem não chora, ensinou-me o Venceslau. A coragem, em vez de se agigantar, diminui. As palavras doem, doem muito. E a Maria Fonseca a chorar no vazio. E eu a engolir as lágrimas. Uma luz iluminou o espaço interior da habitação. Na casa em frente, o senhor Ventura está só, sentado diante da porta, a olhar para a rua. Não sei se procura a luz ou o vazio. O senhor Ventura chegou a tocar o órgão da igreja, mas dispensaram-no porque um dia, com um copo a mais, teve o atrevimento de dizer ao padre que acreditava mais na música de Bach do que no mesmíssimo Deus. Agora, quando fala, só disserta sobre a dor, o tormento, a tristeza e a escuridão. E, sobretudo, sobre os fantasmas da noite. Diz que já não consegue tocar o seu órgão elétrico por causa das artroses. A felicidade é uma espécie de ironia ao contrário. Eu costumo vê-la do avesso. Há uma espécie de vazio no meio de tudo. E a Maria Fonseca a olhar para ele. E eu a olhar para a Maria Fonseca. E o buraco do tempo a olhar para mim. As paredes do falso parecem verdadeiras. Nenhuma história chega até nós integralmente. Isso só aumenta a ânsia da procura. As histórias dançam e nós com elas. A memória é uma viagem dolorosa. Esta é uma história de ausências, com espaços vazios. E da Maria Fonseca a olhar para o vazio. E do Venceslau a olhar para o vazio. E da Feliciana a olhar para o vazio. E eu a olhar para o buraco do tempo. E para eles. Os armários parecem buracos negros, sem livros, sem loiça. Os espaços vazios são cada vez maiores e já não há quem os preencha. A memória dos nossos antepassados é um corredor imaginário. Tudo se afoga em luz. É vertiginoso vaguear por aqui. Eu faço perguntas ao buraco do tempo. Ele não me responde. Tudo se afoga em luz.

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