Poema Infinito (674): Lembra-te...
A ideia empurrada para a luz começa a escurecer. Parece um inseto desnecessário. Tanto carinho para nada. Cores diferentes, com sonoridades idênticas. Cores iguais com sonoridades diferentes. Por vezes a dor dorme em cima da cama, por vezes é a própria cama. O tempo tem vários sentidos, um deles é o da representação. Pela janela observo as bátegas de chuva. Espero que o dia chegue. Espero que o dia acabe. A força do tempo faz-nos rasgar a superfície das ondas outonais. Outro inverno está para vir. Reconheço o sofrimento mesmo quando o vejo escondido por detrás dos olhares. Clarividência, desespero. Silêncio. Tudo tão perfeitamente imperfeito. O amor tão sólido como uma estátua. Lembro o teu olhar escondido atrás de uns óculos de sol. Estátuas e canteiros de flores. Tudo a sofrer debaixo do sol intenso. O outro sol, aquele de que gosto, é suave, perfeito, estranho. Costumo encontrá-lo no inverno. E também as imagens da água quente da torneira. Na primavera, procuro-te nas pequenas searas de centeio, no meio das maçãs verdes, entre os pastos das vacas e das ovelhas, na doçura morna da água do rio. E eu no meio de uma angústia masculina, em cima do cavalo do meu avô, de chapéu de palha, deformado pelas lentes da memória, pela tortura da saudade, pelas juras falsas, pelos nomes esquecidos. Ou pelo facto de rezar. Ou pelas tradições que me deixam angustiado ou me fazem chorar por dentro. Ainda sinto aquele medo. O de tentar até perceber os planetas, o cansaço dos velhos, a lentidão das vacas. E os poemas. E o terço. E a Bíblia. E os meus dedos a caírem sobre as teclas de um órgão de igreja. E eu a carregar aos ombros as traições. E os cães a guardarem os palácios. E os nobres, enjoados, a vomitarem a fartura, a beijarem o Cristo na cruz, a falarem das suas árvores genealógicas que vão dar diretas aos imperadores, quando não ao mesmíssimo Deus Criador de todas as coisas. Cavalos e cavaleiros dentro do seu próprio sonho. Tudo impossível de amar. E o Herberto Hélder a mutilar flores de estufa. E as noivas, com os véus, a fugirem dos seus casamentos e a tatuarem as pernas e os braços. E a rirem-se, como perdidas, das rendas e dos tricôs que as suas mães e avós lhes deram para o enxoval. E os noivos a apertarem ainda mais o nó da gravata para ver se conseguem reduzir a vontade de gritarem o seu tédio. E o bem e o mal a serem lavados a sabão quente e depois secos e engomados. Tanta roupa lavada e outra por lavar. E as sotainas a encobrirem o pecado e as suas ereções. Depois os corpos suaves ficam ásperos. E os dedos. E as bocas. E os sorrisos. E mesmo as palavras. E os cabelos a perderem o brilho. E o desejo a deixar de desejar. E as mãos quentes a ficarem frias. Alguém lê histórias com voz de ternura. E eu a desenhar letras na superfície da água. Olho para o caos que é o centro da vida. As partículas tangenciais do mundo. Pés levantados do chão e o mundo a levitar. Auras azuis em redor dos objetos. Espasmos quentes de desejo. Testículos e úteros. Pénis e vaginas. Sémen. Óvulos. Círculos de pólen no ar. As luzes a aproximarem-se dos planetas. Os continentes a respirarem. Os deuses em fuga. Tanto Deus para coisa nenhuma. Tanto Deus, valha-nos Deus. Tanto Deus para nada. Galáxias e galáxias de pó e gás. O vazio infinito. O vazio. O infinito. Lembra-te que és pó…