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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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18
Jan24

Poema Infinito (697): A Arca

João Madureira

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Durante a tarde, as doses de luz aumentam. E eu fechado dentro do meu quarto. A inquietação tomou conta da casa. E eu suspenso nos meses e os meses suspensos em mim. As imagens já não são suficientes. Por vezes rebentam as chuvadas repentinas. As casas são refúgios para passeantes desprevenidos. Não sei de onde vem esta agressividade que agora sinto. O jardim foi invadido por mariposas. Continuo o utopiómano que sempre fui. Mas mais cético e cínico. As quimeras são um poço sem fundo. Estou a tentar escrever este livro. Estou a tentar repará-lo como se fosse um barco à deriva depois de ter embatido em algo grande. Sou uma espécie de Sísifo feliz. Sinto-me como um espantalho onde os pássaros vão fazer os seus ninhos. E eu sem ser capaz de protestar. Não é romantismo, é uma desgraça engraçada. É uma espécie de saúde cansativa, uma espécie de doença intermitente. A doença pode ser uma espécie de raiva. As coisas mudam à medida que envelhecemos. A força cumulativa da estupidez torna os dias mais ventosos. Já há demasiadas aldeias submersas por causa da construção de barragens. Estou dentro da Arca, mas sinto que não lhe pertenço. Estamos perdidos na imensidão do espaço. Afinal, a quem é que isso interessa? A tempestade rebentou de repente. Afinal, onde estou? Oiço o ladrar dos cães errantes. Andam a construir a velha capela que foi arrasada pela enxurrada. As alterações climáticas estão a provocar inundações terríveis. Muitos visitantes vêm de longe para matar saudades. As vacas e as ovelhas passeiam pelo meio dos jardins gigantes. Vim de tão longe e não sei o que procuro. É difícil uma pessoa habituar-se à solidão. E viver entre a tragédia de não satisfazer um desejo e a tragédia de mais tarde satisfazê-lo. Vivo dentro do quarto das frases vazias. Os rastos da presença dos meus antepassados tanto aparecem como, logo de seguida, desaparecem. É doloroso correr atrás das sombras. Esta é a noite das constelações. Uma das mais belas do ano. O orvalho cai nas árvores sedentas. Tudo faz parte da ilusão. E da desilusão. Saí da Arca. Volto outra vez à Arca. Ando à procura de uma mão semelhante à de Miguel Ângelo para que me salve de morrer afogado em palavras. Entretanto tento arrumar as que me faltam de uma certa maneira. Tento ver se ainda me reconheço nos contornos. Apesar do meu olhar estar já um pouco gasto. E datado. Sinto que a realidade se evapora. A perfeição é uma mentira imperfeita. Sinto-me dentro da Arca como um corpo dentro de outro corpo a observar os desenhos eróticos de Turner. Reparo agora na sua forma de lavar o mundo com a luz com que pintava. Pisco os olhos ao observar no teto as mil fissuras da luz lancinante da lâmpada de néon. Escuto o eco intemporal das vozes das pessoas e o barulho das botas pesadas ferradas que martelam as lajes da rua. A penumbra está espalhada por todo o lado. As sombras parecem suspeitas. O vórtice aspira as palavras incoerentes. Os deuses das pequenas coisas são atreitos ao excesso de zelo. As frases estão cada vez mais frágeis e dolorosamente vazias. Os deuses parecem ter sido apanhados de surpresa. Admira-me a segurança espantosa das suas hesitações, a sua angústia crónica. Ninguém sai ileso do buraco do tempo por onde a Arca se meteu. Os dois relógios marcam horas diferentes. Ambas espantosamente inexatas. Um atrasa-se e o outro adianta-se. Enunciar a verdade inesperadamente continua a assustar as pessoas.

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